Título: ANTAGONISMO FEMININO NA SUCESSÃO DE BUSH
Autor: Dorrit Harazim
Fonte: O Globo, 15/05/2005, O Mundo, p. 41

Ex-primeira-dama Hillary Clinton e secretária de Estado Condoleezza Rice despontam como possíveis candidatas em 2008

BOSTON, Massachusetts. Um embate de eletrizar o mundo. Pela primeira vez na História americana, uma mulher disputaria a Casa Branca ¿ e venceria, pois a candidata adversária seria, também, uma mulher. Neste cenário de sonhos para tablóides e historiadores, a republicana negra Condoleezza Rice enfrentaria a democrata Hillary Clinton na sucessão de George W. Bush, e uma das duas se tornaria presidente dos Estados Unidos em 2008.

Se a eleição fosse hoje, metade desse cenário já estaria construído: Hillary Clinton, 68% de aprovação como senadora por Nova York e, desde os seus tempos de primeira-dama, uma das figuras mais polarizadoras do país, está a postos para tentar reverter a surra que os democratas levaram nas duas últimas eleições.

Quanto à outra metade, ainda está em construção. Mas num ritmo que sugere um fino controle da agenda. No momento oportuno, Condi Rice poderá trocar a roupagem de secretária de Estado americana com que percorre o mundo desde janeiro último e vestir o manto de candidata in pectore do atual presidente. Hillary x Condi? Já há marqueteiros salivando.

O primeiro aceno ocorreu do outro lado do mundo. Era abril e Condoleezza Rice estava em missão oficial na Rússia, estabelecendo o tom do que seria a triunfal visita de Bush à região, como parte das comemorações pelo 60º aniversário do final da Segunda Guerra Mundial na Europa. Antes de sua entrada no salão da rádio Echo Moskvy, para uma entrevista, uma assessora pediu aos fotógrafos e cinegrafistas que prestassem atenção à iluminação. ¿A doutora Rice é muito escura¿, informou, para quem não sabia.

¿Além de negra do Alabama, a doutora Rice também fala russo (sua tese de doutorado foi sobre a União Soviética) e no final do programa o moderador estava visivelmente seduzido pela agilidade verbal da entrevistada. ¿Espero revê-la, talvez quando a senhora for presidente dos EUA¿, brincou ao se despedir. Condi sorriu, deu de ombros, e deixou passar uns segundos antes de dizer ¿nyet¿.

Conservadores cortejam Condi

Em território americano, os formadores de opinião da direita conservadora a cortejam como podem. Em recente entrevista à cúpula do jornal ¿Washington Times¿, foi-lhe perguntado se repetiria a declaração cunhada pelo general William Shermann, em 1884: ¿se indicado, não concorro; se eleito, não assumo¿.

¿ Tenho enorme respeito por quem concorre a um cargo eletivo, mas me é extremamente difícil imaginar-me neste papel ¿ respondeu.

Difícil mas não impossível, interpretaram os mais animados. Talvez por isso, Condi voltou ao assunto dias mais tarde, de forma mais taxativa:

¿ Não tenho desejo algum de me candidatar à Casa Branca. Não pretendo e não vou fazê-lo.

Ao contrário de Hillary Clinton, que precisa manter o perfil de alta visibilidade e voltagem com o qual moldou sua carreira, Condoleezza pode dosar melhor o quanto de impacto quer causar e quando. Enquanto ocupou o cargo de conselheira de Segurança Nacional deixou para o vice-presidente, Dick Cheney, e para o secretário da Defesa, Donald Rumsfeld, o papel de falcões assumidos. Agora, mesmo tendo apoiado a invasão do Iraque com igual vigor, está conseguindo empalidecer a fraca atuação do secretário de Estado anterior, Colin Powell, no cenário mundial.

¿Política é fazer valer os seus interesses, e isso exige poder¿, escreveu. Foi com o poder de seu cargo e do cordão umbilical que a mantém indivisível do presidente Bush que ela se reuniu com membros da oposição da Bielorrússia, por ela qualificada de ¿a última ditadura no coração da Europa¿.

Condi faz agrados aos aliados europeus, acena com consultas mais estreitas entre membros da Otan e amplia o campo de visão e ação da Casa Branca para além do Iraque. Ao final desse segundo e último mandato de Bush, Rice poderia emergir como a arquiteta maior de uma aliança de países democráticos construindo um mundo menos ameaçador. E ser ungida candidata pelas mãos de Bush, numa última tacada desse texano que metade da América não consegue engolir e boa parte da Europa preferiria não ter de reavaliar.

Nesse cenário ideal, referências à guerra em Iraque e Afeganistão soam como estorvo, pois na ótica dos republicanos tratam-se de páginas viradas e bem sucedidas no essencial ¿ Saddam e o Talibã foram derrubados e substituídos por governos locais. Condoleezza herdaria boa parte do acervo da empreitada.

Só que a guerra teima em seguir curso próprio e por vezes parece estar só começando. Semana passada, no Afeganistão, ocorreu a maior manifestação antiamericana desde a queda do Talibã. No Iraque, o país surtou de norte a sul. Tropas americanas travaram a sua maior batalha desde o confronto em Faluja, seis meses atrás, e o número de soldados continua sendo uma sangria para a vida nacional.

O custo das duas guerras para os cofres americanos já ultrapassa os US$200 bilhões. Até o ano 2010, ou seja, dois anos depois da próxima eleição para presidente, os EUA terão gasto perto de meio trilhão de dólares com uma guerra que leva a assinatura de Bush mas carrega impressões digitais de Condoleezza.

Hillary aprende com derrota

Pelo menos neste quesito Hillary Clinton não consegue ser atacada sequer pela legião de inimigos ardentes que amealhou ao longo da vida pública. Desde seus tempos de primeira-dama Hillary registra um dos índices de rejeição mais altos do país (21%, segundo os dados mais recentes). São irredutíveis. Tanto quanto ela. Indagada se os próprios republicanos não a desejariam como candidata presidencial em 2008, para poderem concorrer com um nome que suscita tanta divisão, ela respondeu na lata: ¿Temos um presidente que é bastante polarizador, e muito bem sucedido¿.

Em setembro próximo será lançado no mercado editorial americano um livro que promete torpedear para sempre a candidatura de Hillary. O título já diz tudo: ¿The truth about Hillary: what she knew, when she knew it and how far she'll go to become president¿ (¿A verdade sobre Hillary: o que ela sabia, quando soube e até onde está disposta a ir para se tornar presidente¿), de Edward Klein. Apesar de trombeteado como ¿definitivo¿ por uma milionária campanha de pré-lançamento, o livro dificilmente irá além do que já foi investigado por CPIs do Congresso americano sobre a vida do casal Clinton.

Só que Hillary sempre ressurge do que parecem ser suas cinzas políticas. Nascida no Arkansas, um dos feudos conservadores do país, percebeu melhor que seus colegas democratas que é preciso ouvir as urnas que consagraram Bush em 2004. Perante uma multidão de manifestantes pró-aborto, declarou-se partidária de uma legislação que dê à mulher o direito de decidir. Mas acrescentou: ¿Respeito quem crê sinceramente que em circunstância alguma um aborto deva ser praticado.¿

Foi um choque que mudou o eixo do debate. Ironicamente, a posição da republicana Condoleezza, filha de pastor presbiteriano, não é diametralmente diferente. ¿Um aborto deve ocorrer em circunstâncias tão raras quanto possível, sem intervenção excessiva do governo¿, declarou meses atrás. ¿Não devemos ter o governo impondo sua posição sobre qualquer um dos lados da questão. É uma questão moral extremamente difícil.¿

Duas mulheres que negam ser candidatas. Uma Casa Branca vaga. A corrida já começou.

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