Título: UM CAMALEÃO FRANCÊS HÁ DEZ ANOS NO PODER
Autor: J. M. Martí Font
Fonte: O Globo, 15/05/2005, O Mundo, p. 41

Chirac mantém capacidade de se adaptar a situações, mas sua popularidade está em baixa

PARIS. Jacques Chirac acaba de completar dez anos na Presidência da França. Não houve festa, nem brindes. Sua popularidade beira níveis muito baixos, embora ao longo de seu mandato tenha atingido níveis piores. ¿Dez anos, já é o suficiente¿, gritaram jovens para o general De Gaulle quando ele se retirou depois de perder um referendo que convocara em 1969. Também Chirac organizou um referendo. Mas deixou claro que não se demitirá ainda que os franceses rejeitem a Constituição européia, no próximo dia 29. Tampouco descartou apresentar-se para um terceiro mandato, embora com 75 anos em 2007.

A carreira desse político de raça ¿ cuja habilidade para tirar partido das situações mais desesperadoras é tão lendária quanto sua capacidade para atirar no próprio pé ¿ é cheia de surpresas. Ele é como um camaleão: adapta-se a tudo, e sempre ressuscita. É mimético. Encaixa-se e não se mexe.

`Aqui e agora você e eu somos iguais¿

É famoso o debate que teve em 1988 com o falecido presidente socialista François Mitterrand, de quem era primeiro-ministro.

¿ Eu lhe conheço bem ¿ disse-lhe Mitterrand ¿ porque você é meu primeiro-ministro e é um bom primeiro-ministro. Mas é muito sectário para ser presidente.

Chirac se sentiu humilhado e respondeu agressivamente:

¿ Senhor Mitterrand, aqui e agora eu não são seu primeiro-ministro. Sou o candidato à Presidência. Aqui e agora você e eu somos iguais.

Mansamente, e olhando-o de soslaio, Mitterrand respondeu:

¿ O senhor tem toda a razão, senhor primeiro-ministro.

Perdeu e voltou a se apresentar sete anos depois, embora ninguém apostasse nele no início de 1995, quando boa parte de seu partido apoiou a candidatura rival de Edouard Balladour. Ganhou de Balladour no primeiro turno e do socialista Lionel Jospin no segundo, e recebeu o trono do velho monarca republicano moribundo.

Dois anos depois, sem razão aparente, dissolveu o Parlamento e convocou eleições legislativas. Foi uma reviravolta. A vitória socialista o forçou a co-habitar com Jospin durante os cinco anos seguintes. Ele próprio vivera esta situação quando fora primeiro-ministro de Mitterrand.

Le Pen no segundo turno: calafrios na França

Foi sua a iniciativa de reduzir o mandato presidencial de sete para cinco anos, o que o levou a se apresentar novamente em 2002. Com 20% dos votos, Chirac liderou o primeiro turno, mas a dispersão do eleitorado de esquerda deixou fora Jospin e pôs em segundo lugar Jean-Marie Le Pen, de extrema-direita. A França teve calafrios. A esquerda se mobilizou para fechar as portas ao racismo e à xenofobia da Frente Nacional. Chirac teve mais de 82% dos votos no segundo turno.

¿ Vocês compreenderam ¿ disse.

Mas não foi assim. A esquerda se sentiu traída e agora quer passar o recibo com o referendo. O grande paradoxo é que o próprio Jospin teve que sair de seu retiro para pedir o ¿sim¿ à Constituição.

A década chiraquiana parece nada ter deixado de especial. Nos últimos anos ele se tornou uma espécie de Quixote planetário, defensor do meio ambiente. Houve algumas decisões importantes, como a lei do véu, que proíbe símbolos religiosos nas escolas. Mas seu momento de glória foi a oposição à guerra no Iraque. Continuam abertos processos por financiamento ilegal de seu partido e irregularidades na passagem pela prefeitura.