Título: Desatino governamental
Autor: ROBERTO CORRÊA DE MELLO
Fonte: O Globo, 18/10/2004, Opinião, p. 7

Oprojeto de lei governamental para a criação da Agência Nacional do Cinema e do Audiovisual (Ancinav) prevê uma proteção às avessas, fazendo cair por terra conceitos jurídicos e de cidadania há anos consagrados pela legislação autoral. A Ancinav pretende intervir de forma incisiva em toda a indústria cinematográfica e audiovisual, dentre elas a de músicas criadas para filmes. Para a persecução desses objetivos inconstitucionais, estaria arrecadando e distribuindo direitos autorais alegando suposto cumprimento de sua obrigação na divulgação e fomentação da cultura.

Todavia, os autores do projeto esqueceram-se que os verdadeiros fomentadores da cultura no país são os criadores intelectuais, dentre eles os autores de obras musicais para inclusão em obras cinematográficas e audiovisuais. Embora o projeto disponha sobre a organização de atividades cinematográficas e audiovisuais, sobre o Conselho Superior do Cinema e do Audiovisual, em momento algum foi solicitada a participação dos titulares de direitos autorais na sua elaboração. E não podemos esquecer que as alterações sugeridas geram prejuízos incalculáveis aos titulares de direitos autorais e conexos.

O primeiro prejuízo estaria na exclusão de direitos constitucionalmente previstos: aos autores pertence o direito exclusivo de utilização, publicação ou reprodução de suas obras, transmissível aos herdeiros pelo tempo que a lei fixar. Eventual alteração na sistemática de arrecadação e distribuição de direitos de execução pública de obras musicais (que atualmente é feita pelo Escritório Central de Arrecadação e Distribuição) retiraria dos compositores, músicos e artistas o direito que constitucionalmente lhes pertence de decidir sobre a utilização de suas obras.

O projeto, ao retirar do âmbito privado essa administração, fere, todos os princípios consagrados na Convenção de Berna ¿ incorporada à nossa legislação interna em 1975 através da promulgação do decreto n 75.669 e no acordo comercial sobre os aspectos dos Direitos de Propriedade Intelectual, conhecido como pela sigla em inglês, Trips. Na medida em que o projeto em questão atribui ao Estado (Ancinav) o exercício de direito exclusivamente privado, constitucionalmente previsto, é praticada verdadeira interferência na propriedade intelectual privativa dos titulares de direitos autorais e conexos ferindo, mais uma vez, os princípios constitucionais consagrados pela Carta Magna.

O projeto prevê, pela primeira vez na História do país, a fixação em lei de percentual para a cobrança de direitos autorais pela exibição de obras cinematográficas e audiovisuais, levando para o âmbito estatal atributo exclusivamente privado, qual seja, a exclusividade do autor em valorar a obra e fixar-lhe o valor que entende devido para sua utilização. Este direito está intrinsecamente ligado ao exercício de direitos garantidos pela Constituição aos criadores intelectuais e a normatização contrária aos preceitos constitucionais gera um abuso do legislador e a inconstitucionalidade da lei.

Mais uma crítica ao projeto está no fato de que a nova lei desconsideraria a qualidade de co-autor do titular do argumento musical da obra cinematográfica ou audiovisual. Isso porque a lei n 9.610/98, em seu artigo 16 estabelece que são co-autores da obra audiovisual o autor do assunto ou argumento literário, musical ou líteromusical e o diretor. Assim, na medida que o projeto estabelece um teto máximo para a cobrança dos direitos autorais de obras musicais incluídas em obras cinematográficas ou audiovisuais ¿- nada estabelecendo quanto ao percentual aos direitos autorais do autor do argumento literário e o diretor ¿- impera um inequívoco desprestígio à lei n 9.610/98.

Os dispositivos contidos no projeto do Ministério da Cultura interferem em todos os atos que impliquem comercialização ou divulgação de obras audiovisuais e cinematográficas. Significa dizer que todos aqueles que desejarem fazer uso dessas obras deverão solicitar a Ancinav a competente autorização, mediante o pagamento de taxas preestabelecidas. Até mesmo os próprios autores deverão solicitar esta autorização se quiserem utilizar sua obra. Tal determinação, além de ser um disparate ante os princípios constitucionais e legais do atual ordenamento jurídico brasileiro, representa um retrocesso aos direitos adquiridos ao longo de vários anos, desde a promulgação da primeira lei que previa a proteção à propriedade imaterial e a exclusividade do autor em fazer dela o uso que melhor lhe aprouver. ROBERTO CORRÊA DE MELLO é presidente da Associação Brasileira de Música (Abramus).