Título: MAIS PERTO DA SANTIDADE
Autor:
Fonte: O Globo, 14/05/2005, O Mundo, p. 36

Bento XVI rompe regra da Igreja e apressa processo para beatificar João Paulo II

Respondendo a um anseio de milhões de católicos, o Papa Bento XVI anunciou ontem que apressará a beatificação de seu antecessor, João Paulo II, abreviando o processo que poderá levar a sua canonização. Com isso, quebrou uma regra da Igreja Católica segundo a qual o processo de beatificação só poderia ter início cinco anos após a morte do candidato a santo. Teve como precedente uma decisão tomada pelo próprio João Paulo II, para a beatificação da Madre Teresa de Calcutá. Embora o Pontífice não tenha se referido à duração do processo, especialistas disseram que deverá ser o mais rápido da História. No mundo inteiro, fiéis comemoraram o primeiro grande anúncio feito pelo novo Papa.

O Vaticano anunciou ontem também o substituto de Joseph Ratzinger no cargo de prefeito da Congregação para a Doutrina da Fé, um dos cargos mais importantes na Igreja, e que ele exerceu durante 23 anos, até ser eleito Papa. Trata-se de William Levada, arcebispo de São Francisco, Califórnia. Para se tornar o primeiro americano a assumir o posto de guardião da doutrina católica, Levada terá que ser nomeado cardeal, o que deverá acontecer em breve.

A notícia da beatificação de João Paulo II foi dada no dia dos festejos da aparição da Virgem de Fátima, em Portugal, em 1917. Karol Wojtyla tinha uma forte ligação com a santa, que ele dizia ter salvado sua vida desviando de seu coração

as balas disparadas pelo turco Ali Agca no atentado de 1981, que ontem completou 24 anos. O anúncio foi feito diante de um grupo de padres durante uma visita de Bento XVI à Basílica de São João de Latrão, em Roma.

- E agora tenho uma notícia muito alegre para vocês - afirmou o Papa.

Em seguida, ele leu em latim - língua oficial da Igreja - uma carta de 9 de maio em que pede ao cardeal José Saraiva Martins, prefeito da Congregação para a Causa dos Santos, para não considerar o período de cinco anos necessário para dar início ao processo de beatificação de João Paulo II. Disse que o processo poderia "ter início imediatamente". Surpresos, os padres reagiram com prolongados aplausos. O Papa brincou, dizendo que não precisaria repetir o anúncio em italiano, uma vez que eles o haviam entendido.

Papa levou livros, móveis e piano para o Vaticano

Desde a morte de João Paulo II, em 2 de abril, católicos pedem sua canonização. Em seu funeral, multidões gritaram "Santo subito!" ("Santo já!") e ergueram faixas com a frase. Tradicionalmente, o processo é longo, mas João Paulo II já acelerara a beatificação da Madre Teresa em 1999, dois anos após sua morte. O processo terminou em 2003. Muitas pessoas que conheceram João Paulo II e trabalharam com ele estão vivas, o que facilitaria o processo, que depende de testemunhos sobre milagres a ele atribuídos.

O clima era de alegria na Polônia, terra de João Paulo II, onde a campanha por sua beatificação tem sido intensa desde sua morte.

- O que aconteceu hoje é a confirmação de algo que algumas vezes esquecemos quando avaliamos seu pontificado: a santidade pessoal de Karol Wojtyla - disse o bispo Piotr Libera, porta-voz do Episcopado da Polônia.

No Vaticano, Bento XVI tornou seu apartamento acolhedor como sua antiga casa, em Roma: levou móveis, livros e o piano no qual costuma tocar Mozart e Bach, além de instalar a governanta Ingrid Stampa, professora de música com a qual costuma fazer duetos. Em agosto, quando for à Alemanha, ele visitará a sinagoga de Colônia, decisão anunciada ontem.

Beatificação é o primeiro passo para a canonização

Santos e beatos são considerados intercessores entre cristãos e Deus

O processo de beatificação é um passo obrigatório para a canonização. Porém, apenas o título de beato já garantiria a João Paulo II o direito de ser considerado pela Igreja um intercessor entre os cristãos e Deus.

O processo de beatificação tem origem nos primeiros dias do cristianismo e começou com o culto localizado a mártires da Igreja. Normalmente, quem decidia a santidade de uma pessoa era a população local. O bispo apenas abençoava esta decisão popular.

Porém, diversos erros na concessão de beatificações levaram a Igreja, no século XI, a limitar a canonização a reuniões conciliares. Em 1634, o Papa Urbano VII decretou que apenas a Santa Sé teria direito de conceder os títulos de santo e beato.

Há duas diferenças fundamentais entre o beato e o santo. Beatos podem ser honrados no local onde nasceram e onde realizaram seu trabalho, e não em outros lugares. A maior diferença, entretanto, é o fato de o processo de beatificação ser apenas uma permissão para que a pessoa seja venerada, enquanto o título de santo não apenas é universal como também obrigatório para os cristãos.

O processo de beatificação é complexo e exige diversos passos, com a escolha de defensores da causa do possível beato e diversas reuniões. A análise de milagres é uma etapa posterior. Pelo menos um milagre deve ser comprovado depois da morte do candidato antes da beatificação. O processo de canonização pode ser aberto assim que o de beatificação é terminado. Dois milagres devem ser relatados para que um beato possa ser considerado santo. Várias pessoas já alegaram milagres de Karol Wojtyla, alguns deles já depois de sua morte.

João Paulo II optou por multiplicar beatos e santos. Proclamou 1.338 beatos e 482 santos. Os papas anteriores tinham beatificado 1.310 pessoas e canonizado 300. Para João Paulo II, era importante que a Cristandade se sentisse próxima da santidade, e assim espalhou beatificações pelo planeta, terminando com a predominância de santos italianos. Em 1998, o brasileiro Frei Galvão foi beatificado. Outras duas pessoas com vidas ligadas ao Brasil foram honradas. O padre espanhol José da Anchieta foi beatificado e a italiana Madre Paulina foi canonizada em 2002. A idéia era mostrar à Humanidade que a santidade estava em seu meio.

- As beatificações e canonizações devem ser realizadas em tempo útil, de forma que sejam testemunhos vivos para as pessoas que os conheceram - disse ontem José Policarpo, patriarca de Lisboa.

> O guardiaão da doutrina

CIDADE DO VATICANO. O novo prefeito para a Congregação da Doutrina da Fé é um teólogo conservador, amigo do Papa Bento XVI, com quem trabalhou no mesmo órgão. Colegas o descrevem como um homem de mente aberta, que leva para um cargo crucial para a Igreja uma combinação de sabedoria, experiência e anos de trabalho pastoral.

Desde 1995 arcebispo de São Francisco, a capital gay dos EUA, William Levada, de 68 anos, tem lidado com assuntos espinhosos para a Igreja, tais como leis para permitir o casamento de homossexuais, ao qual se opõe firmemente, embora insistindo em que não discrimina os gays.

- Ele é muito conservador. Mas não é teimoso. Ouve e aceita as opiniões dos outros - disse o bispo-auxiliar de São Francisco, Ignatius Wang.

Parentes de vítimas de abusos sexuais cometidos por padres nos EUA o criticaram duramente por não ter afastado de suas funções os religiosos sob seu comando culpados de tais crimes.

Levada trabalhou na Congregação para a Doutrina da Fé de 1976 a 1982, e ali estava quando Joseph Ratzinger foi nomeado, em 1981, para o cargo que agora ele assumirá. Analistas disseram que não se devem esperar mudanças importantes.