Título: Ibase e RNP, pai e mãe da rede verde- e-amarela
Autor: André Machado e Elis Monteiro
Fonte: O Globo, 16/05/2005, Informatica etc, p. 3

No meio do jogo, a ONU, impondo ao governo brasileiro o uso da internet na Eco 92, também teve seu papel

Não é de todo errado afirmar que foi nas mãos de Carlos Alberto Afonso e de seus companheiros do Ibase que o braço nacional da rede mundial de computadores levou as primeiras palmadas e os primeiros afagos. Foi no Ibase que nasceu o primeiro serviço brasileiro de internet não-acadêmica e não-governamental, o AlterNex. A hoje adolescente rede também é fruto dos esforços da Rede Nacional de Pesquisa (RNP), lançada em 1989 pelo Ministério da Ciência e Tecnologia (MCT) com a intenção de implantar o primeiro backbone nacional e difundir o uso da internet.

- Começamos com os projetos de uso de tecnologias em 1981. Em 1984, aparece o Interdoc, embrião desse consórcio de organizações que tem como missão buscar democratizar a informação usando as ferramentas mais modernas possíveis. Na época, era o email, usando redes eletrônicas que vieram a convergir para a internet, no final da década de 80 - conta Carlos Afonso.

Foi justamente no fim da década de 80 e no começo da de 90 que o jogo começou a mudar. Cabia agora aos desbravadores correr atrás de apoio do governo para a empreitada.

Com a Eco 92, a internetBR nunca mais foi a mesma

Se não fosse e Eco 92... bem, se não se fosse a conferência mundial sobre meio ambiente no Rio, a história da internet no Brasil podia ter sido diferente. Conta Carlos Afonso:

- A Eco 92 foi a primeira grande conferência da ONU que se abriu para a sociedade civil efetivamente. E é óbvio que a maioria das entidades ambientalistas não ia ter condições de vir para o Rio. Então, começamos a pensar em como usar a internet para isso. Fomos a Genebra, convencemos o secretário-geral do projeto da Eco 92, que hoje vem a ser o chairman do grupo de trabalho de governança na internet do Kofi Annan. Ele leu a nossa idéia, viu a nossa experiência e falou "a gente tem que fazer isso". Deu luz verde, contra o governo brasileiro.

Foi quando a ONU decidiu comprar a briga, enviando ao governo brasileiro um pedido formal de inclusão, na Eco 92, do projeto internet do Ibase.

- A ONU pediu que o projeto internet fosse incluído no acordo de sede. Significa que aquele espaço da conferência passou a ser um território internacional, onde só a ONU manda. E nós entramos com nosso projeto nesse ambiente. E as portas se abriram.

Depois da Eco 92, o primeiro grande marco da história da internet, não só da brasileira, foi a chegada da World Wide Web (www) e do Mosaic. De repente, a velocidade se tornou pequena, e a banda, menor ainda.

Entre 1994 e 1995, a internet brasileira tornou-se um grande híbrido entre iniciativas comerciais correndo em paralelo com a rede acadêmica. Até que no começo de 1995 começou a se formar a estrutura que ia gerar o mercado de provimento de acesso. A Embratel, que até então não tinha se dado conta do filão, passa a fornecer conexão por atacado e as teles locais a ofereciam aos provedores. Na ponta, os usuários finais, enfim, passaram a ter acesso à internet.

- A idéia era que a Embratel fosse um provedor para as teles locais, que o seriam para os provedores de usuários finais. Não era interessante que a Embratel desse acesso a usuário final porque ela destruiria toda uma cadeira de valores e uma estrutura hierárquica bastante elegante - conta Demi Getschko.

Felizmente, dizem os desbravadores, a demora da inserção das empresas de telecom na exploração da internet fez com que a sociedade civil e o meio acadêmico pudessem criar uma governança na rede. Assim, em 31 de maio de 1995, foi criado o Comitê Gestor da Internet Brasileira, visando a dar uma vestimenta um pouco mais organizada, mais oficial, a uma atividade voluntária e espontânea de atender ao DNS brasileiro e aos números IP.

- A internet, no Brasil, já nasceu separada da legislação de telecomunicações, do monopólio Telebrás, mesmo depois das privatizações. Hoje, por causa da convergência, isso começa a se diluir. Mas isso é o futuro, fazer o quê? - diz Carlos Afonso.

E agora, para onde se dirige a internet?

E para onde segue a internet depois do início heróico e de turbulências como a bolha (vide quadro na página 2)? Para Jack London, o futuro é gerar mais conhecimento.

- O grande espaço do crescimento da internet está na acumulação do conhecimento de maneira quase ilimitada. Ela consegue somar conhecimentos de modo que nenhuma outra mídia é capaz. Esse será o grande papel da rede: um acumulador constante e permanente de conhecimento.

Aleksandar Mandic, do provedor Mandic, diz que o Brasil tem vocação para ser techie.

- O Brasil é um grande case de sucesso na internet. Já antes dela éramos campeões em automação bancária. Muitos dizem, ah, isso era por causa da inflação, mas e daí? A Argentina tinha inflação e não fez isso. E fomos campeões também na internet na América Latina. Temos vocação para isso. Acredito que vamos ser o primeiro país a votar pela internet.

NÃO, MEU BEM, NADA DE LINHA... na página 4

'Quando apareceu o Mosaic, a vida era fácil para os experts; as coisas corriam de boca em boca'

DEMI GETSHKO

'Em 95 a Amazon era um galpão enorme, com mesas de pingue-pongue para todo lado repletas de livros'

JACK LONDON

linha do tempo

1990-1995

1990: Nasce a Associação para o Progresso das Comunicações (APC). O AlterNex já funcionava como BBS. Em 19 de fevereiro, o número de usuários do Node AlterNex chegava a 159 pessoas. Em meados de 1990, o número de pessoas que pagavam pelo serviço não passava de 450. Técnicos do Institute for Global Communications (IGC, EUA), do Nirv Centre/Web (Canadá) e do GreenNet (Inglaterra) levaram equipamentos, em sigilo, para Cuba para criar uma rede de chamadas internacionais entre a ilha e a rede da APC e com a internet.

1991: Em fevereiro, a linha de 9600 kilobits/s da Fapesp, que rodava Bitnet e HEPNet, roda pacotinhos de internet. O backbone criado pela RNP já estava funcionando com 17 pontos, destinado à comunidade acadêmica. Entra no ar a linha BitNet da UFRJ, que logo depois migra para a internet. O Projeto AlterNex, do Ibase, inaugura um serviço experimental de acesso direto a Cuba via DDI, usando modems Telebits Trailblazers, os famosos "abridores de picadas". O serviço permitia o envio e o recebimento de correio eletrônico e listas de discussão usando o protocolo UUCP (Unix-to-Unix Copy Program) com conexão diária entre o Rio e Havana. A velocidade de transmissão de textos chegava a 600 caracteres por segundo entre Rio e São Francisco e cerca de 400 caracteres por segundo entre Rio e Havana (até 1995, muitos estados brasileiros estavam conectados à internet a 960 caracteres por segundo).

1992: Contrariando o governo brasileiro na época, técnicos do Ibase convencem o secretário-geral do projeto da Eco 92 a incluir o projeto da internet do Ibase no acordo de sede, o que garantiu ao Ibase trazer equipamento adequado para a conexão do evento à internet. O projeto recebeu uma doação da Sun na época de US$100 mil em servidores Unix e software. A internet, assim, foi instalada no espaço da conferência no RioCentro, no espaço das ONGs no Fórum Global, no Hotel Glória, e no espaço dos jornalistas. Ainda não existia a www e as conexões eram feitas para envio e recebimento de mensagens. O projeto Internet da Eco 92 quebra resistências governamentais à abertura de conexões internet permanentes para a RNP no país. Foi assim que foram ativados finalmente dois canais permanentes de 64 Kb/s com os EUA a partir de São Paulo (Fapesp) e Rio (UFRJ). Com conexões permanentes, o Brasil já estava efetivamente na internet

1993: Chega a World Wide Web (www), revolucionando as conexões. Surge o Mosaic, primeiro browser. As imagens começam a chegar à internet.

1995: Em abril, o governo abre o backbone para provedores de acesso comerciais. Tem início no Brasil a internet comercial. A Embratel passa a oferecer conexão por atacado a teles locais, estas a provedores de acesso e, estes, aos usuários finais. Ocorre a separação entre a internet acadêmica e a comercial.

Qual é a data, afinal?

Foi no dia 18 de julho de 1989 que o Ibase ativou o primeiro servidor Unix conectado à internet nos EUA pelo protocolo UUCP, e abriu o acesso a esse servidor via linha discada e via Renpac para uso das entidades civis. Esta, para mim, é a data simbólica de nascimento da internet no Brasil.

Do lado da comunidade acadêmica, em 1988 já se formavam no Brasil alguns embriões independentes de redes, interligando grandes universidades e centros de pesquisa de Rio, São Paulo e Porto Alegre aos EUA. Para integrar esses esforços e coordenar uma iniciativa nacional em redes no âmbito acadêmico, o Ministério da Ciência e Tecnologia formou um grupo composto por representantes de CNPq, Finep, Fapesp, Faperj e Fapergs, para discutir o tema. Como resultado, surge o projeto da RNP, formalmente lançado em setembro de 1989.

No fim de 1990, em resposta a demandas de entidades civis interessadas em participar da primeira grande conferência da ONU aberta às ONGs, a Eco 92, no Rio, o Ibase procurou a ONU para propor a montagem de uma rede de computadores ligada à internet nos espaços da conferência. Muitas entidades ambientalistas não poderiam viajar ao Rio e queriam ter acesso aos debates e documentos do evento. O projeto do Ibase foi aceito pela ONU e incluído no Acordo de Sede com o governo brasileiro. Em junho de 1992, redes de computadores montadas por um consórcio internacional de entidades civis sob a coordenação do Ibase foram implantadas em todos os espaços da Eco 92, interconectadas através do projeto AlterNex à internet.

O projeto internet da Eco 92 foi um marco da internet brasileira, porque quebrou resistências governamentais à abertura de conexões internet permanentes para a RNP no país. Foi assim que foram ativados finalmente dois canais permanentes de 64 Kb/s com os EUA a partir de São Paulo (Fapesp) e Rio (UFRJ).

Do lado do Ibase, um projeto de incubação de provedores foi iniciado em 1992, com a conexão de dezenas de serviços de BBS ao AlterNex para troca de mensagens com a internet. Daí nasceu a maioria dos grandes provedores internet do país, principalmente a partir de 1994.

Ao mesmo tempo, entidades acadêmicas formularam a proposta de criação de um conselho nacional de governança da internet brasileira, para garantir certos princípios: o conceito do nome de domínio de país como patrimônio da comunidade e não uma mercadoria, a noção que a troca de dados entre redes nacionais tem que ser feita dentro do país e não através de espinhas dorsais estrangeiras, e assim por diante. Tais idéias, todas pioneiras em nível mundial, formaram a base da criação do Comitê Gestor da Internet, formalizado pelo governo federal em 31 de maio de 1995.

CARLOS A. AFONSO é diretor de planejamento da Rits e membro do Comitê Gestor