Título: Pau-de-arara resiste no sertão
Autor: Selma Schmidt/Paulo Marqueiro
Fonte: O Globo, 17/05/2005, Rio, p. 18

Caminhões deixam de trazer retirantes, mas Rio é o quarto estado que mais os atrai

O pau-de-arara ainda não saiu de cena. Substituído pelos ônibus como meio de transporte de retirantes do Nordeste para o Sudeste, ele ainda circula por estradas empoeiradas do sertão.

Os desconfortáveis caminhões foram usados por muitos nordestinos que deixaram a terra natal, principalmente nas décadas de 40 e 50, para tentar a sorte em cidades como Rio, São Paulo e Belo Horizonte. A imagem dos veículos ficou tão associada aos retirantes que inspirou canções como "O último pau-de-arara" (Venancio, Corumbá e José Guimarães): "Só deixo o meu Cariri/ No último pau-de-arara".

Entre os que embarcaram na carroceria de um caminhão para fugir da seca no Nordeste está o presidente Luiz Inácio Lula da Silva. Aos 7 anos, ele deixou Caetés, em Pernambuco, com a mãe e os irmãos para uma viagem de 13 dias até Guarujá (SP).

A partir dos anos 50, os paus-de-arara foram sumindo das rodovias no eixo Nordeste-Sudeste, sendo substituídos por Kombis, principalmente na década de 60, e, mais recentemente, por ônibus, como mostrou O GLOBO no último domingo. Proibidos de transportar passageiros nas rodovias federais, os caminhões ficaram restritos às rotas do sertão e do agreste. Mas muitos continuaram trazendo, clandestinamente, migrantes para o Sudeste.

Em 26 de janeiro de 1990, a curiosidade de retirantes diante das belezas da Baía de Guanabara levou à apreensão de um pau-de-arara na Ponte Rio-Niterói. E mostrou que o meio de transporte, que se imaginava banido das rodovias federais, ainda era usado. Ansiosos para observar a vista da ponte, alguns dos 22 migrantes que viajavam espremidos no caminhão F-4000, da Bahia para São Paulo, retiraram a lona que cobria a carroceria, despertando a atenção da polícia.

Segundo o IBGE, o Rio é o quarto estado que mais atrai migrantes (de todas as regiões). O primeiro é São Paulo, que recebeu 1,22 milhão de pessoas de 1995 a 2000; o segundo é Minas, com 447.782; Goiás aparece em terceiro, com 372.702; o Rio, destino de 319.749 migrantes, surge em quarto lugar, seguido do Paraná, com 297.311.

'A gente fica com o corpo moído'

Às quartas-feiras e aos domingos, dias de feira-livre em Hidrolândia, no interior do Ceará, o pau-de-arara leva moradores dos distritos mais afastados para o centro do município. Nos fins de semana em Tapuio, distrito de Cariré, também no Ceará, os caminhões transportam jogadores para o campo de futebol da região.

Na madrugada de 27 de abril, 50 moradores da Ilha de Izaú, em Hidrolândia, embarcaram num pau-de-arara rumo ao centro da cidade, onde chegaram depois de duas horas e meia. O caminhão estacionou ao lado de outros paus-de-arara, vindos de outros distritos. O transporte é custeado pela prefeitura, que contrata os motoristas e fornece o combustível.

Passava das 13h quando o caminhão retornou a Hidrolândia. Sentados sobre ripas de madeira, sob um sol forte, muitos passageiros tentavam se proteger cobrindo a cabeça com panos e toalhas. As crianças menores viajavam na boléia.

- A gente chega em casa com o corpo tão moído que leva um dia para se recuperar - diz a pescadora Francisca Jesuíno Sampaio, de 54 anos, que morou dez anos no Rio e tem três filhos e dois netos vivendo em Rio das Pedras.

As picapes também servem para suprir a falta de ônibus em cidades do interior do Ceará. Como acontece com os paus-de-arara, as pessoas são transportadas nas carrocerias, até mesmo em rodovias. Donos de picapes são contratados por prefeituras para levar crianças às escolas. João José da Rocha Filho é um deles. Trabalha nos distritos de Cajazeiras e Capoeiras, em Varjota (CE). Pelo serviço, João, que já morou no Rio, recebe da R$50 por dia. Na carroceria de sua picape viajam as crianças maiores. As pequenas, como Maria Alice Freires, de 8 anos; Taís Mesquita, de 6; e Josilene, de 5, filha de João, vão na boléia.

Júlio Cesar, de 22 anos, filho de João, reveza-se com o pai no trabalho com a picape. Ele retornou em março do Rio, onde morou durante um ano. A mãe, Raimunda Rocha, e a irmã Juliana, de 12 anos, moram na Favela Gardênia Azul, em Jacarepaguá.

- Depois que voltei, consegui comprar em Varjota uma moto zero quilômetro. O sonho dos jovens daqui é juntar dinheiro no Rio para poder comprar uma moto no Ceará - conta Julio Cesar.

"Vou ver vocês ai no Rio"

"Oi, mãe. Já tem um mês que eu estou no Ceará . Estou me dando muito bem trabalhando com meu pai. Se Deus quiser, daqui a uns dois anos eu vou ver vocês aí no Rio. Mãe, dê um abraço bem forte e um beijo na Juliana. Outro beijo para você também. Até a próxima."

Carta de Julio Cesar Rocha, escrita em 27 de abril passado, em Varjota (Ceará), para a mãe, Raimunda Melo Rocha, que vive na Favela Gardênia Azul, em Jacarepaguá

Ha 50 anos, reportagem do Cruzeiro retratou sofrimento

Em 1955, incógnitos, os jornalistas Mario de Moraes e Ubiratan de Lemos - este já falecido - viajaram num pau-de-arara, por 11 dias e 2.300 quilômetros, de Salgueiro (PE) até Caxias. Num saco, levavam roupas velhas e uma máquina Rolleiflex. Junto com eles, apertados na carroceria suja e desconfortável, 102 nordestinos, um cachorro e um curió que Mario comprou na Bahia. A viagem foi contada na reportagem "Uma tragédia brasileira: os paus-de-arara", publicada em outubro de 1955 pela revista "O Cruzeiro" e vencedora do primeiro Prêmio Esso de jornalismo.

- Era proibida a entrada de paus-de-arara no Rio. Quando chegou a Caxias, um dos motoristas mandou que todos desembarcassem dizendo que estávamos no Rio. E retornou - conta Mario, hoje com 79 anos.

Para Mario, as cenas presenciadas durante a viagem são inesquecíveis:

- O caminhão só parava quando quebrava ou quando o motorista queria. O sofrimento era brutal. As pessoas urinavam no próprio caminhão.

No percurso, pela Rio-Bahia ainda não asfaltada, os fatos se sucediam.

- Vi acidentes e até assassinatos de motoristas por nordestinos revoltados - revela Mario.

A reportagem começou com a ida da dupla de repórteres para Campina Grande (PB) em cima da carga de um caminhão que partira do Campo de São Cristóvão. Ao chegar à Paraíba, foram descobertos como jornalistas e, diante da ameaça de serem mortos por agenciadores de nordestinos, partiram para Pernambuco. Lá descobriram um pau-de-arara que partiria para o Rio. Os dois justificaram as fotos dizendo ser fotógrafos que tentariam a vida no Rio. Só se apresentaram como jornalistas depois do desembarque em Caxias.

DOMINGO: Da miséria do sertão à realidade da favela

ONTEM: O perfil dos novos migrantes

AMANHÃ: A baixa escolaridade