Título: Manobras em Washington
Autor: José Meirelles Passos
Fonte: O Globo, 17/05/2005, O Mundo, p. 24

Empresas acusadas nos EUA têm apoio oficial para derrubarem ações de indenização

Advogados americanos, representando 17 argentinos vítimas da ditadura em seu país, apresentarão documentos esta semana num tribunal em São Francisco, na Califórnia, na tentativa de derrubar um pedido da DaimlerChrysler (antiga Mercedes Benz) para que a Justiça engavete uma ação que aquele grupo abriu contra ela em janeiro do ano passado.

A empresa é acusada de ter colaborado com a ditadura argentina (1976-1983), entregando nome, endereço e fotografia de cada um dos empregados que a gerência considerava subversivos. Eram, na verdade, membros de uma comissão sindical dentro daquela montadora: eles incomodavam a direção da empresa com suas campanhas por melhores salários e condições de trabalho, segundo diz o processo judicial.

Os queixosos estão esperançosos, mas sabem que mesmo que consigam derrubar a moção da DaimlerChrysler, surgirá em breve um obstáculo ainda mais formidável: a expectativa é de que se o juiz encarregado não der ouvidos àquela multinacional, os argentinos em breve terão de enfrentar o próprio governo dos Estados Unidos.

Acontece que várias ações semelhantes vêm sendo bombardeadas pelo Departamento de Estado ao longo do governo Bush. A estratégia tem sido pressionar os juízes a não aceitar determinados casos:

- O governo manda carta ao juiz alegando que, se ele deixar o processo correr, acabará interferindo na política externa dos EUA e prejudicando o país - disse ao GLOBO o advogado Daniel Kovalik, que representa as vítimas argentinas junto com seu colega Terry Collingsworth.

Apenas 2 dos 17 sobreviveram

Kovalik e Collingsworth são especializados em casos de violações dos direitos humanos e trabalham para o International Labor Rights Fund, organização não governamental defensora dos direitos trabalhistas. Os 17 que constam do processo contra a DaimlerChrysler eram empregados da Mercedes na Argentina. Faziam parte de uma comissão sindical na montadora em González Catán, subúrbio de Buenos Aires. A ação afirma que eles foram entregues às forças militares, logo depois do golpe, como subversivos.

Só dois dos queixosos sobreviveram às torturas. Os outros são familiares de 15 funcionários que, como milhares de outros argentinos, desapareceram. Segundo Kovalik, o juiz deverá ouvir os queixosos em junho, e ele acredita que o caso será levado a julgamento. Ainda não foi fixada uma cifra para indenizar as vítimas. O advogado agora já começa a se preparar para argumentar posteriormente, na época em que chegar ao tribunal a carta do Departamento de Estado.

Ela costuma dizer que a antiga legislação em que se baseiam os queixosos tem sido mal interpretada. Trata-se da Lei de Queixas por Danos a Estrangeiros. Segundo o governo, ela só daria direito a reivindicações de vítimas de violações dos direitos humanos que acontecessem dentro dos EUA.

Collingsworth já iniciou uma campanha nos bastidores lembrando que aquela lei abrange crimes cometidos por companhias americanas também no exterior:

- Seja qual for a forma que Bush e seus amigos empresários utilizem para minar essa lei, aos olhos do resto do mundo fica a sensação de que as companhias americanas estão acima da lei - disse ele.

Uma das cartas do Departamento de Estado obtidas pelo GLOBO comprova a pressão sobre os tribunais que cuidam de casos contra multinacionais americanas. Ela foi dirigida em dezembro por William H. Taft IV, conselheiro legal daquele ministério, ao Departamento de Justiça e se refere a uma ação contra a Occidental Petroleum Corp.

A empresa é acusada de ter efetuado - juntamente com uma empresa de segurança e com a Força Aérea da Colômbia - o bombardeio de um vilarejo próximo a suas instalações naquele país, sob o argumento de que ali viviam guerrilheiros. O resultado foi a morte de 19 pessoas desarmadas. Sete delas eram crianças.

Na carta, o Departamento de Estado afirma que levar esse caso adiante provocaria "um impacto adverso aos interesses da política externa do EUA". Diz, ainda, que isso poderia dar a impressão de uma intromissão dos EUA em assuntos da Colômbia: "Além disso, essa iniciativa pode ser também percebida como se o governo dos EUA não reconhecesse a legitimidade das instituições judiciais colombianas".

Mais adiante, porém, a carta deixava clara a principal preocupação do governo: a ação poderia acabar com uma fonte de petróleo para os EUA. O documento dizia que "ações judiciais como essa diante do juiz William Rea têm o potencial de dissuadir atuais e futuros investimentos americanos na Colômbia".

Depois de advertir que maus tempos na economia colombiana poderiam ter conseqüências nocivas "aos EUA e a nossos interesses na Colômbia e na região andina", a carta arremata: "Finalmente, a redução de investimentos americanos na indústria de petróleo na Colômbia pode prejudicar a meta vital da política dos EUA de expandir e diversificar nossas fontes de petróleo importado".

As vítimas de violações cometidas no exterior por multinacionais americanas podem processá-las nos EUA graças a uma lei de 1789, conhecida pela sigla Atca (Alien Tort Claims Act, Lei de Queixas por Danos a Estrangeiros). Vários casos foram abertos nos últimos anos contra corporações, mas nenhum foi julgado sob essa lei. As empresas buscam acordos, oferecendo indenizações em vez de se exporem ao risco de serem obrigadas, por um juiz, a pagar indenizações mais altas, e evitando, principalmente, ver o prestígio de suas marcas e produtos abalados por um escândalo.

Câmara convocará empresas

Presidente da Comissão de Direitos Humanos pede explicação sobre repressão

BRASÍLIA. A presidente da Comissão de Direitos Humanos da Câmara, Iriny Lopes (PT-ES), vai convidar a direção das empresas que colaboraram com a repressão para que expliquem sua atuação durante o regime militar. Segundo a deputada, as denúncias são graves e precisam ser esmiuçadas. Documentos inéditos do extinto Dops paulista, revelados pelo GLOBO no domingo, mostram que houve cooperação estreita entre grandes empresas da região do ABC, como a Volks e a Chrysler, e o governo militar. Montou-se um esquema de espionagem nas fábricas e sindicatos, com pessoal recrutado das Forças Armadas, que passava informações ao governo.

A deputada, que apresentará requerimento convidando as empresas para audiência pública, afirmou que pretende também requisitar toda essa documentação do governo.

O vice-presidente da comissão também acredita que as empresas precisam falar sobre sua ligação com o regime militar.

- Temos que dialogar com a atual direção dessas empresas. A própria exposição pública dessa coonestação com a repressão deve vir à tona. Temos obrigação de fazer isso - disse o deputado Chico Alencar (PT-RJ), vice-presidente da comissão, defendendo a abertura dos arquivos do período.

Alencar afirmou que a realização de uma audiência pública é o primeiro passo para recuperar essa história. Segundo ele, quando os fatos do passado não são esclarecidos, corre-se o risco de que voltem a acontecer.

- Não devemos pensar que os horrores partiram só do Estado. Houve uma trágica parceria público-privada, uma PPP do mal - comparou.

Gigantes são processadas

Coca-Cola e ExxonMobil acusadas de abusos

WASHINGTON. Além da DaimlerChrysler e da Occidental Petroleum, outras três grandes corporações americanas estão sendo processadas nos EUA por violações dos direitos humanos cometidas no exterior. Uma delas é a ExxonMobil, por crimes de tortura, violações sexuais e assassinatos, perpetrados por mercenários contratados para proteger suas usinas de gás em Aceh, Indonésia. A segunda é a Coca-Cola: suas subsidiárias colombianas têm apoiado financeiramente esquadrões da morte, que torturam e matam líderes sindicais. A terceira é a mineradora Drummond Coal Company, acusada de usar paramilitares para se livrar - definitivamente - de líderes trabalhistas que a incomodam na Colômbia.

Associações como a USA Engage e o U.S. Council for International Business vêm apoiando o governo Bush em sua pressão sobre os tribunais, para que não aceitem processos daquele tipo. Segundo Terry Collingsworth, diretor do International Labor Rights Fund (ILRF), que defende vítimas, advogados do governo Bush têm alegado que governos estrangeiros podem se ofender ao serem indiretamente implicados nas violações e, então, se tornarem relutantes em cooperar com os EUA na guerra ao terror.

- Se Bush conseguir descarrilhar processos contra multinacionais, os muitos contribuintes corporativos de sua campanha estarão imunizados de crimes como escravidão e tortura em ações no exterior. (J.M.P.)

Legenda da foto: NA FOTO de 1978, um metalúrgico em greve segura um jornal no sindicato da categoria em São Bernardo do Campo, no ABC