Título: SOB PRESSÃO DO GOVERNO, 'NEWSWEEK' DESAUTORIZA FORMALMENTE REPORTAGEM
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Fonte: O Globo, 17/05/2005, O Mundo, p. 25

Notícia de profanação do Alcorão causou protestos em países muçulmanos

WASHINGTON. Sob pressão do governo dos Estados Unidos, a revista "Newsweek" desautorizou ontem formalmente a reportagem em que afirmara que exemplares do Alcorão tinham sido profanados na base de Guantánamo, em Cuba. A Casa Branca fizera duras críticas à revista por causa dos violentos protestos em países muçulmanos causados pela história, segundo a qual interrogadores jogaram uma cópia do Alcorão na privada diante de muçulmanos em Guantánamo - onde estão prisioneiros das guerras no Afeganistão (2001) e no Iraque. Para a Casa Branca, a reportagem foi imprecisa e prejudicou a imagem dos EUA no exterior. Já o Pentágono a considerou falsa.

Publicada no último dia 9, e baseada em fontes anônimas, a reportagem provocou protestos violentos no Afeganistão - onde pelo menos 16 pessoas morreram - e em países como Paquistão, Índia e Indonésia. Cerca de cem pessoas ficaram feridas nas manifestações.

Para Condoleezza, reportagem causou danos

Na edição da "Newsweek" desta semana, publicada domingo, o editor Mark Whitaker admitiu que a reportagem era imprecisa. Segundo ele, um alto funcionário do governo americano que relatara a profanação do Alcorão disse depois que não estava certo se verificara o fato em documentos. Mas o governo considerou insuficiente a atitude da revista, o que acabou forçando-a a retratar-se mais uma vez, de forma inequívoca.

- É estarrecedor que agora a "Newsweek" reconheça que apurou os fatos erradamente mas se recuse a se retratar. Acho que há um certo padrão jornalístico a ser seguido e que neste caso não foi. A reportagem teve sérias conseqüências. Pessoas perderam a vida. A imagem dos EUA no exterior foi prejudicada - afirmou o porta-voz da Casa Branca, Scott McClellan.

Durante o dia, Bryan Whitman, porta-voz do Pentágono, afirmara que a reportagem era "demonstravelmente falsa". Já a secretária de Estado, Condoleezza Rice, afirmou:

- Isto causou muitos danos.

No Afeganistão, líderes muçulmanos receberam com ceticismo as reações nos EUA. O clérigo Sadullah Abu Aman não aceitou as explicações. Ele é líder de um grupo que ameaçou convocar uma guerra santa contra os EUA se os interrogadores que supostamente profanaram o Alcorão não forem entregues à Justiça.

- Não vamos ser enganados por isto. Esta é uma decisão dos EUA para salvarem a si próprios. Mesmo um camponês analfabeto sabe disso e não aceitará - afirmou.

Eleito com apoio dos EUA, o presidente do Afeganistão, Hamid Karzai, expressou descontentamento com a "Newsweek" por ter publicado a reportagem "sem uma prévia verificação". Já o governo do Paquistão, outro aliado de Washington, voltou a pedir uma profunda investigação do caso. Apesar do desmentido da revista, o Exército disse manter uma investigação sobre a denúncia.

Americanos desconfiam da imprensa

Pesquisa diz que seis em cada dez acham cobertura tendenciosa

WASHINGTON. O público americano desconfia cada vez mais da imprensa do país, segundo uma pesquisa da Universidade de Connecticut divulgada ontem. Seis em cada dez americanos entrevistados consideraram tendenciosa a cobertura jornalística nos EUA. Só quatro em cada dez disseram que a mídia está fazendo um trabalho bom ou excelente. Mas sete em cada dez jornalistas qualificaram seu trabalho como bom ou excelente.

Já do Centro de Investigação Pew indicou numa pesquisa recente que 45% dos americanos não acreditam em nada ou quase nada do que lêem nos jornais. Citando esse estudo, uma comissão do "New York Times recomendou um plano para reforçar a credibilidade do jornal que incluísse a limitação do uso de fontes anônimas em reportagens.

Na mídia americana, são inúmeros os casos recentes de retratações devido a reportagens relacionadas ao governo. Em maio do ano passado, o "New York Times" admitiu ter publicado informações questionáveis em sua cobertura da guerra no Iraque, baseadas em fontes duvidosas. "Não fomos tão rigorosos como deveríamos", disse o jornal.

Dois meses depois, o "New York Times" fez mais um mea-culpa: reconheceu que errara ao concordar com o presidente George W. Bush que Saddam Hussein escondia armas de destruição em massa. "Estávamos errados em relação às armas" disse.

Em agosto do ano passado, outro importante jornal americano, o "Washington Post", fez uma dura autocrítica a sua cobertura da guerra, considerando-a benevolente demais com o governo Bush. E em março deste ano, o âncora da TV CBS Dan Rather se demitiu depois de admitir que baseara em documentos falsos reportagens sobre supostas irregularidades de Bush para escapar do serviço militar no Vietnã.

Legenda da foto: NA ÍNDIA, um líder muçulmano protesta contra a revista e um jovem segura uma cartaz que diz: "América, fora! Você está indo longe demais"