Título: Sem estudo, perdidos nos labirintos da cidade
Autor: Paulo Marqueiro e Selma Schmidt
Fonte: O Globo, 18/05/2005, Rio, p. 16

Dos nordestinos que vêm para o Rio, 72% não têm o ensino fundamental

Maria do Socorro da Silva, de 39 anos, saiu de Itabaiana, no interior da Paraíba, há sete anos, para morar no Rio. Até hoje, tudo o que ela conhece da cidade são a Favela de Rio das Pedras, onde vive, e os hospitais Lourenço Jorge, na Barra, e Miguel Couto, na Gávea - estes por absoluta necessidade. Sem saber ler ou escrever, Maria do Socorro teme perder-se nos labirintos da cidade.

- Não ando sozinha - justifica. - Só saio de casa quando os meninos estão com febre. E mesmo assim, alguém sempre vai comigo.

A moradora de Rio das Pedras resume uma contundente realidade dos migrantes vindos do Nordeste. Segundo o IBGE, dos 159.704 nordestinos que entraram no Estado do Rio entre 1995 e 2000, 25.227 são analfabetos, o que representa 16%. Ainda de acordo com o instituto, 114.632 (72%) não concluíram o ensino fundamental (primeira à oitava série).

Um estudo do pesquisador Fernando Albuquerque, gerente do projeto Componentes da Dinâmica Demográfica, do IBGE, mostra as diferenças entre os migrantes nordestinos e os de outras regiões: do total de retirantes analfabetos, 60% vêm do Nordeste, enquanto 30% são provenientes de Minas Gerais, Espírito Santo e São Paulo. Já entre os migrantes que estudaram 15 anos ou mais, 50% vêm de Minas, Espírito Santo e São Paulo e apenas 18,6% da Região Nordeste.

' Aqui, o pouco dá para comer'

A falta de instrução tem sido um fardo a mais na vida de Maria do Socorro, que é casada com o pedreiro Cosme Pereira, de 35 anos, e tem três filhos: Wellington, de 9 anos; Severino, de 12, e Elisângela, de 17. Na sala de seu barraco, onde uma enorme rachadura no piso denuncia que o terreno está cedendo - a casa foi construída numa área de pântano às margens da Lagoa de Jacarepaguá - ela conta que na Paraíba passava mais dificuldades do que em Rio das Pedras.

- Moço, lá é brabo. Não tem serviço. Aqui, o pouco que se ganha dá para comer - diz.

Apesar disso, Maria do Socorro não pensa em ficar no Rio definitivamente:

- Tenho fé em Deus que um dia vou voltar para a minha terra. E quando chegar lá, vou contar como é o Rio de Janeiro. Vou falar toda a verdade.

E se alguém argumenta que ela só conhece uma parte da cidade, responde prontamente:

- Mas isso aqui também faz parte do Rio.

Angústia parecida tem a paraibana Silvaneide Rodrigues da Silva, de 26 anos, moradora da Favela da Maré. Com os filhos David, de 9 anos, e Eduarda, de 7 - nomes inspirados em personagens das novelas "Carrossel", do SBT, e "Por Amor", da Rede Globo - ela desembarcou no Rio, há cinco meses, vinda de Serra Branca, para encontrar o marido, Erinaldo de Souza, que trabalha como entregador de bebidas. Chegou "sem leitura", como ela diz, mas cheia de sonhos.

- Só sabia assinar o meu nome e, mesmo assim, falhado. Comecei a trabalhar aos sete anos. Fui carvoeira, plantei, capinei, colhi. A vida na roça é pesada. Não tinha tempo de estudar - conta ela, mostrando as mãos calejadas pela enxada.

Trabalhando como auxiliar de limpeza numa ONG da Maré, Silvaneide se emociona ao lembrar o dia em que precisou testar 30 chaves para abrir uma porta: ela não sabia ler as etiquetas que identificavam as chaves. No Rio, ela só conhece a Favela da Maré. A falta de instrução faz com que se sinta estrangeira numa cidade de 5,8 milhões de moradores e com taxa de analfabetismo de 5,2%, uma das menores do país:

- A imagem do Rio lá fora é uma coisa maravilhosa. Você acha que vai chegar aqui e enricar. Quando chega, vê aquele Cristo de braços abertos, mas depois percebe que a cidade não é daquele jeito. É só ele que está de braços abertos.

Hoje Silvaneide está sendo alfabetizada na Escola municipal Nova Holanda, na Maré, onde também estudam seus dois filhos, e começa a descobrir um mundo novo.

- Não saber ler é o mesmo que ser cego - diz a paraibana, que sonha ser secretária.

Ela não pretende ficar para sempre no Rio, mas o tempo necessário para juntar dinheiro e comprar uma casa em Serra Branca:

- Com R$2 mil, eu consigo comprar uma casa de três quartos, toda murada.

Segundo o IBGE, os paraibanos têm os mais baixos índices de escolaridade entre os nordestinos que se mudaram para o Rio: 84% não concluíram o ensino fundamental. É o caso de Evilásio dos Santos, de 38 anos, que há um ano trocou Taperoá, na Paraíba, por Rio das Pedras.

- Meus pais têm problemas de saúde. Quando sobra dinheiro, mando para eles - diz Evilásio, que trabalha na obra do Favela-Bairro em Rio das Pedras.

Um dos dados que têm preocupado os pesquisadores do IBGE é o aumento do número de migrantes com baixa escolaridade. Em 1991, 65% dos nordestinos que chegaram do Piauí não tinham concluído o ensino fundamental. Em 2000, esse percentual havia crescido para 72%. Situação semelhante aconteceu com os que vieram de Alagoas. No mesmo período, aumentou de 69% para 70% a proporção dos que não completaram o ensino fundamental.

A estada no Rio foi o passaporte para o cearense Francisco de Mesquita Melo concluir o ensino fundamental. Morador de Santa Quitéria, no sertão do Ceará, Francisco passou 22 de seus 60 anos em Nova Iguaçu, na Baixada Fluminense. Foi lá que o lavrador teve suas três filhas, Cláudia, Gláucia e Cleide, e conseguiu fazer o curso supletivo.

- De sossego, o Ceará é melhor. No Rio, a gente vive com o coração apertado - disse Francisco, depois da cerimônia de casamento de sua filha caçula, Cláudia, de 23 anos, dia 23 de abril, na Paróquia de Santa Quitéria.

Cláudia tinha 6 anos quando Francisco voltou a morar em Santa Quitéria. Ela trabalha numa loja de eletrodomésticos e como professora, dando aula para crianças. Durante as férias, cursa uma faculdade intensiva de pedagogia no próprio município, onde pretende continuar vivendo:

- O Rio é uma cidade mais para sonhos. Estou bem aqui - garante Cláudia.

Em Varjota, no Ceará, João José da Rocha Filho, de 50 anos, tem baixa escolaridade, mas trabalha duro para ver formadas as três filhas menores, de 5, 8 e 12 anos:

- Quero que minhas filhas cheguem à faculdade - afirma João, que é dono de um bar e de uma picape, usada no transporte de alunos para escolas de Varjota.

" E andavam para o sul, metidos naquele sonho. Uma cidade grande, cheia de pessoas fortes. Os meninos em escolas, aprendendo coisas difíceis e necessárias. "

Trecho de "Vidas Secas", de Graciliano Ramos

Vim atras de um sonho

"Papai, sinto muita saudade de você. Queria estar aí, mas não posso, porque vim atrás de um sonho, que é comprar uma casinha, como todos que vêm para cá. Espero que um dia, quando eu realizar esse sonho, possa voltar e tomar conta de você, que é sozinho. O Rio é muito bom, só não é melhor por causa da violência. Se a gente trabalha, consegue dinheiro, coisa que nunca tive na Paraíba. O Rio tem lugares bonitos, que eu ainda não conheço. Os meninos estão estudando e estão saudáveis, graças a Deus. Tchau, beijos e muitas saudades".

De Silvaneide Rodrigues da Silva, na Maré, para o pai, Severino Bezerra da Silva, em Boqueirão (PB), em carta ditada aos repórteres do GLOBO

DOMINGO: Da miséria do sertão à realidade da favela. SEGUNDA: O perfil dos novos migrantes. ONTEM: Os paus-de-arara não saíram de cena. AMANHÃ: As profissões dos nordestinos