Título: Se desistirmos, não haverá desculpas
Autor: Renan Calheiros
Fonte: O Globo, 20/05/2005, Opinião, p. 7

Estou empenhado no debate da reforma político-partidária, e concordo plenamente com a qualificação que lhe foi dada: essa é "a mãe de todas as reformas".

Em primeiro lugar, depois de consultar os presidentes e líderes dos partidos, chegamos a um primeiro acordo no sentido de implantar as mudanças por etapas, algumas para valer já nas eleições do ano que vem e outras com um cronograma previsto para 2008 e 2010.

Penso que devemos realizar imediatamente duas mudanças no regulamento infraconstitucional, para que novas regras vigorem já na eleição do próximo ano.

A primeira delas diz respeito à fidelidade partidária, para evitar o troca-troca de partido.

A solução não precisa esperar pela reforma política, que contém outras medidas reforçando a fidelidade partidária.

Desde já, podemos realizar mudanças nos regimentos internos da Câmara e do Senado, estabelecendo as bancadas eleitas como base para a divisão do poder por todo o período de quatro anos entre as eleições nacionais.

Com a alteração do regimento, mesmo que os parlamentares troquem de partido posteriormente, isso não influenciará a partilha dos direitos dos partidos dentro do Congresso.

A outra ação que considero de necessidade imediata para o Brasil é o fim da verticalização.

Tenho realizado diversas reuniões com os presidentes e líderes dos partidos com representação congressual e, apesar de não conseguirmos ainda unanimidade quanto ao mérito, obtivemos consenso quanto à necessidade de tramitação de proposta que se encontra na Câmara. Ela foi aprovada na Comissão de Constituição e Justiça em 11 de maio.

Além das três mudanças mais imediatas - fidelidade e verticalização e federação de partidos - acho que devemos planejar algumas outras para serem postas em prática nas eleições municipais de 2008.

Em primeiro lugar, penso que devemos lançar mão de um sistema misto de votação. Atualmente, a eleição proporcional é feita de forma nominal.

A outra modalidade é a das listas partidárias que, dependendo do modelo adotado, podem variar.

Proponho que adotemos um sistema misto de listas. Metade das vagas seria preenchida em votação nominal, como é hoje. E metade das vagas seria preenchida com votação em listas fechadas.

Mas o que determinará o número de vagas é o número de votos que o partido tiver na lista fechada. Assim, em vez apenas do individualismo que marca as campanhas atuais, teremos o fortalecimento dos partidos.

Muito já se disse sobre o financiamento público das campanhas eleitorais.

Em primeiro lugar, o sistema atual favorece o poder econômico e desequilibra sensivelmente a disputa.

O outro grande problema deriva do primeiro.

Se, para ser eleito, o candidato depende do poder econômico, ele passa a representar não só seus eleitores, mas também aqueles que o financiaram.

De forma que o atual sistema de financiamento das campanhas políticas é ineficaz e ineficiente se observado do ponto de vista econômico, político ou moral.

Ele embute um custo terrível ao país. E o que é pior, esse custo não pode ser medido facilmente.

Já o financiamento público - exclusivamente público - devo reforçar, corrige muitas distorções.

O financiamento público das campanhas é, ao contrário do modelo atual, eficiente econômica, política e moralmente.

Penso que essas mudanças pontuais podem ser feitas independentemente do texto da reforma política, que está sendo negociado na Comissão de Constituição e Justiça da Câmara e que traz outras regras para fortalecer os partidos, para dar transparência, estabilidade e simplicidade ao quadro político brasileiro.

Não posso deixar de tecer um comentário ligeiro sobre as cláusulas de desempenho e a federação de partidos. As chamadas cláusulas de desempenho impõem um nível mínimo de representatividade aos partidos. Isso é bom.

É recomendável, entretanto, que encontremos uma forma de proteger partidos históricos no Brasil, como o PCdoB, o PPS, o PSB, o PDT, que representam minorias organizadas e que fazem um contraponto saudável às forças hegemônicas no nosso país.

Por isso, defendo as cláusulas de desempenho desde que elas venham junto das federações partidárias.

Minha disposição, como já deixei claro no XVII Fórum Nacional, é a de insistir, persistir e perseverar. Desistir, nunca. Não haverá desculpas, se não fizermos essa reforma.

RENAN CALHEIROS é presidente do Senado Federal.

E como fica o eleitor?

Como presidente da Câmara dos Deputados, quero trazer à consideração da sociedade brasileira um assunto com que temos de lidar. Falo da reforma de nosso sistema político. O tema vai e volta com freqüência, sobretudo a partir da Assembléia Nacional Constituinte. Naquele momento, muitas idéias surgiram, algumas lograram inscrever-se em nosso texto constitucional, mas houve certa timidez na incorporação de mudanças.

Até hoje, muitos, sobretudo no meio acadêmico, questionam a necessidade de mudanças políticas. Para eles, seria preciso deixar nossas normas eleitorais e partidárias amadurecerem. Reformas agora seriam precipitação.

Permito-me discordar. Dezessete anos são transcorridos da promulgação da Carta. Já é tempo para avaliarmos o que funcionou e o que precisa ser mudado, para que a política brasileira não seja obstáculo ao progresso nacional, senão uma poderosa força propulsora dele.

Começo mencionando nosso sistema partidário. A democracia moderna precisa de partidos sólidos, que clarifiquem para o eleitorado as opções em jogo. Partidos que elejam seus candidatos e sejam capazes de exercer responsavelmente as funções de governo e as de oposição.

Sem os partidos, não há ordem, previsão e continuidade, exigências de uma política que sirva à sociedade e à economia, em vez de conturbá-las. Sem os partidos, a governabilidade se debilita. Isso não é bom para a democracia nem certamente para o país.

Ora, como aceitar que, desde as eleições de 2002 até hoje, tenha havido nada menos do que 237 mudanças de partido na Câmara dos Deputados, efetuadas por 152 parlamentares? Muitas dessas trocas ocorreram até mesmo antes da posse dos eleitos. Não me parece um quadro edificante para nosso país. Como fica o eleitor, nisso tudo?

Temos de enfrentar o problema. É necessário rigor na questão da fidelidade partidária, para que o eleito não continue desrespeitando seu eleitor.

Propostas para sanar essa grande falha, entre outras da reforma política, estão em debate na Câmara e no Senado. Não tenciono deixar as matérias sem deliberação. Algumas propostas ainda precisam de mais ampla discussão.

No tópico da fidelidade acredito estar o assunto já amadurecido. Responde a um clamor da sociedade e pode ir para rápida deliberação. Também medidas regimentais, que levem a respeitar a composição partidária saída das urnas no tocante aos cargos nas comissões, vão ser postas em prática. Conto que, ao término de meu mandato, tenhamos já equacionado o problema da fidelidade partidária.

Um outro assunto pertinente aos partidos políticos é a chamada verticalização. Por interpretação do Tribunal Superior Eleitoral, em 2002, impôs-se a regra de que as coligações sejam as mesmas em todos os níveis da Federação. Essa regra seria, para os que a defendem, mais um instrumento de reforço dos partidos, ao obrigá-los a assumir uma fisionomia nacional.

Apesar da boa intenção da medida, acredito ser ela um equívoco. Cada nível, o federal, o estadual e o municipal, tem sua realidade própria. Duas agremiações podem concordar sobre um problema regional e, portanto, aliar-se, mas discordar quando se trata de um problema nacional e, em conseqüência, ficar em campos opostos. Ignorar essa diferença significa menosprezar nosso federalismo, arranjo indispensável a um país com tantas desigualdades regionais.

Quando se fala de reforma política, pensa-se no sistema partidário e eleitoral. Tende-se a omitir, porém, as relações entre os poderes. Nesse tópico, há questões muito sérias a enfrentar.

A Carta de 88 colocou nas mãos do Executivo um instrumento extraordinário, as medidas provisórias. Disposições similares existem hoje em numerosas democracias e traduzem uma exigência aos governos nos tempos modernos.

Aqui, todavia, a competência de editar esses decretos-leis tem permitido ao Executivo recorrer às MPs para tudo. Esticam-se ao limite e até além do limite os conceitos de "relevância e urgência". O excepcional se torna quotidiano.

Não é preciso tanta medida provisória! O Executivo tem de moderar o seu insaciável apetite legiferante, em muitos casos até abusivo, como no caso da famigerada MP nº 232. Um quadro normativo tão fluido como o que as medidas provisórias criam, traz incerteza jurídica e, assim, prejudica a atividade econômica regular.

O processo legislativo normal pode dar vazão, perfeitamente, a uma boa parcela das matérias tratadas por medidas provisórias. O Executivo pode pedir urgência e "urgência urgentíssima" para seus projetos. Esses poderão, então, contar com a contribuição relevante do Legislativo, com estudo, debate, consulta, audiência da sociedade, deliberação racional, enfim. Assim deve ser o processo legiferante. Com as medidas provisórias é diferente, dado seu fluxo torrencial e o caráter de fatos consumados que configuram.

Estou engajado na luta para que o instituto da MP volte ao leito da normalidade. Esta será uma importante reforma política, com implicações para nosso desenvolvimento.

SEVERINO CAVALCANTI é presidente da Câmara dos Deputados.

Desde 2002, 152 parlamentares mudaram 237 vezes de partido na Câmara