Título: Que venha a chuva
Autor: Tereza Cruvinel
Fonte: O Globo, 22/05/2005, O Globo, p. 2

Impedir CPIs é um recurso legítimo embora de alto custo, desgastante e malvisto. Mas não há também comprovação de que toda CPI é letal para o Executivo. Para o governo Lula, com tantos danos já acumulados na área política, enfrentar a CPI pode ser uma opção de risco, mas dela pode vir a chance de mudar o curso da narrativa. Para a sociedade, seria uma daquelas chuvas que lavam a paisagem empoeirada de Brasília ao fim da seca.

É grande o risco de fracasso da operação montada para, até quarta-feira, convencer quase 50 deputados (preocupados com a renovação de seus mandatos ou magoados com o governo) a retirar suas assinaturas. Deputados se arrependem com facilidade diante de compensações, como se viu tantas vezes no governo passado, depois de terem dado número para CPIs que nunca sairam. Mas nunca foi necessário obter em tão pouco tempo o arrependimento de tantos aliados. Sobrevindo o fracasso, o governo enfrentará a CPI na defensiva, tendo perdido a chance de aceitá-la com desassombro na primeira hora.

O presidente Lula, que embarca hoje para o Japão, tenta não demonstrar obsessão para evitá-la. E não apenas porque disse aquela frase na sexta-feira: ¿Olhem para a minha cara e vejam se estou preocupado¿. Em algumas conversas, andou dizendo coisa parecida: sabe que haverá prejuízos para o governo, perda de tempo e energia no Congresso e uso político da CPI. Mas não acha que será o fim do mundo. Não tem o menor receio, teria dito segundo um dos relatos, de que o fio dos Correios leve a algum rio de lama em seu governo. Pelo contrário, andou dizendo, citando as operações da Polícia Federal e da CGU que lhe dão um grande saldo positivo no combate à corrupção.

Apesar disso, a caça aos aliados que assinaram está em curso, em mais um sinal de que a área política não tem dono. Ou Lula autorizou ou deixou que fosse implementada mesmo pensando o contrário. Mas ainda que ele tenha apenas tentado se descolar do eventual fracasso da operação, há no PT quem pense que enfrentar a CPI será menos danoso e traz até uma oportunidade de corrigir o rumo. É o caso do governador do Acre, Jorge Viana, que diz:

¿ A primeira coisa que precisamos admitir com franqueza é que estamos enfrentando um momento de adversidade na relação com os aliados. Não adianta tapar o sol com a peneira. E precisamos explicar que isso ocorre porque este, como qualquer governo, terá que governar o Brasil em regime de aliança. Se erramos ao geri-la, há tempo de corrigir isso e restaurar a maioria. Quanto à CPI, enfrentá-la será inclusive uma oportunidade para devolver a este instrumento de investigação parlamentar sua verdadeira natureza. Nos últimos tempos, as CPIs se transformaram em tanques na luta política. E quando falo isso, refiro-me até ao PT no passado. É tempo de parar com esta mística da CPI como bomba atômica.

Mas, por diversas outras razões, a CPI teria o bom efeito da chuva. O maior dos riscos, a contaminação da economia, só será real se a CPI encontrar fatos graves o suficiente para criar incertezas sobre o destino do governo. Nem a oposição acredita nisso. O líder da minoria, José Carlos Aleluia, tem dito que ninguém ganhará com o uso político da CPI, que serão escolhidos nomes experientes e equilibrados para compô-la. A sociedade também já tem maturidade suficiente para identificar e recusar crises artificiais. Ao uso político toda CPI se presta, mas os governos se perdem quando ficam em minoria dentro delas, sujeito ao canhoneiro adversário. Como ficou Collor.

É verdade que a base governista está esgarçada e há canibalismo entre os partidos. A CPI terá 32 integrantes: 16 deputados e 16 senadores. Na Câmara, pela regra da proporcionalidade, o governo deve ficar com 20 lugares e a oposição, com 12. Entre petistas e aliados, o governo é perfeitamente capaz de indicar 20 nomes preparados, respeitados e experientes.. O Senado mandará sete da oposição e nove do governo. Embora lá a debandada tenha sido maior, nove bons soldados o governo deve ter.

E vindo a chuva, lavam-se todos. A oposição terá sua oportunidade de fustigar o governo no campo delicado da ética. Vai garimpar, mas a peneira pode trazer diamantes ou pequenos cristais, para não dizer apenas areia, pois pelo menos um corrupto confesso existia nos Correios. O governo terá uma boa chance de, no balanço do barco, jogar algumas cargas ao mar. Depurar a base, ainda que fique com um bloco de apoio menor, mas coeso. E a sociedade ficará livre desta poeira que não baixará se não for interrompida a caça às irregularidades. Pela imprensa, pelo Ministério Público e pela oposição.