Título: FAZER POLÍTICA
Autor:
Fonte: O Globo, 22/05/2005, Opinião, p. 6
Opaís tem sido bombardeado por denúncias de corrupção e maus costumes políticos. A incidência bem próxima de fatos escandalosos pode dar a impressão de que afundamos no lodo. Mas casos de corrupção que vêm à tona e são apurados, com responsabilização de seus autores, fazem parte do processo democrático.
O que realmente preocupa, neste momento, é o mau estado da noção de governabilidade. Como diversos analistas têm apontado, o que era um governo novo, de um partido recém-chegado ao poder, viu minguar de forma alarmante sua capacidade de ação política, por todo um acúmulo de erros.
Pode ser cedo para falar em ¿crise institucional¿ ¿ tendo o Brasil feito progressos, em anos recentes, nesse terreno da construção institucional. Mas não há estrutura que resista a choques muito repetidos; e, sobretudo, o arcabouço institucional não é obra de pedra e cimento: precisa ser trabalhado diariamente.
Daí as preocupações que se acumulam, originadas não só da falta de eficiência do governo no trato dos assuntos políticos, mas no que chega a parecer uma inapetência para esse tipo de trabalho. Dado o agravamento do quadro, o presidente dá sinais de movimento; chama as pessoas para conversar, menciona propostas. Uma delas é a de uma reforma política que seria ¿a mãe de todas as reformas¿. Mas ainda falta que o governo demonstre verdadeira vontade de agir; e sobretudo, que confira a esse trabalho a importância que ele tem.
Isso até agora não aconteceu, por razões que se poderia chamar de ¿genéticas¿, ou estruturais. O PT é um partido moderno; e, desde que chegou ao poder, tem evoluído em matéria de conceitos e práticas. Mas ainda purga alguns vícios de origem, que vêm das suas nascentes marxistas/socialistas.
No caldo de cultura onde nasceu o PT, a atividade política tradicional sempre foi vista com desdém. Ainda está na memória de todos a passagem de Luiz Inácio Lula da Silva pelo Congresso ¿ passagem efêmera, marcada pela famosa referência aos ¿300 picaretas¿. Não há Congresso no mundo que não tenha os seus picaretas. Mas quando a vida política avança, os picaretas cedem o passo às lideranças mais afinadas com o bem público ¿ não fosse assim, todo o sistema viria abaixo.
No velho quadro mental do marxismo, entretanto, picareta é a própria natureza do que se chamava de ¿democracia burguesa¿ ¿ um sistema que, naquela visão, existia apenas para dar lugar a um outro. Era o tipo de messianismo peculiar às esquerdas, que só recentemente encolheu devido a desastres espetaculares como o fim do sistema soviético. Antes que isso acontecesse, o processo político existia apenas como pretexto para a ¿tomada do poder¿. Conquistado o poder, aí sim se pensaria no que fazer com ele.
A bem da verdade, diga-se que o PT nunca se deixou aprisionar por esses moldes, porque tinha legítimas origens populares, e não simplesmente ideológicas. Mas alguma coisa ficou daquele berço de origem ¿ como a idéia de que do lado do PT estava a pureza, e do outro a corrupção. Eleito presidente, Lula também mostrou que não era um simples ideólogo, que não andava nas nuvens, que não tinha vontade de embarcar em aventuras como planos econômicos salvacionistas. Por conta disso, o seu capital político aumentou; e no plano internacional, ele passou a ser visto como uma proposta nova e original de governo de esquerda.
Paradoxalmente, no plano da política o que se viu foi a tentativa de transpor para o conjunto da sociedade métodos utilizados no âmbito interno do PT. E que aparentemente funcionaram, numa primeira fase, até que o superministro José Dirceu fosse reduzido às suas verdadeiras dimensões. A partir daí, viu-se o PT soçobrar no varejo da política. O que devia ser realismo político passou a ser pragmatismo fisiológico. E o maior dos desastres, como se sabe, foi a perda das posições na direção da Câmara, por efeito de uma estratégia política suicida.
Neste momento, tão séria é a anemia do aparelho político do governo que não há soluções milagrosas ao alcance da mão.
Sempre é tempo de salvar o principal. E o principal é deixar claro que este é um governo que não aceita os maus costumes políticos (não havendo até agora nada que desabone moralmente a conduta do presidente).
Não é hora de mágicas, e sim de posturas consistentes. E também de entender que a atividade política não é um subproduto da conquista do poder: ela é a própria respiração da sociedade, o diálogo que deve ser permanente entre eleitores e eleitos.
Só assim se escapa do pânico que costuma alastrar-se em períodos pré-eleitorais.