Título: O DEBATE NO GOVERNO CONTINUA INTERDITADO
Autor: José Roberto R. Afonso
Fonte: O Globo, 22/05/2005, Opinião, p. 7

Oaniversário da Lei de Responsabilidade Fiscal foi marcado por comemorações e arrependimentos. Quem era contra, agora é a favor. É inegável o avanço das instituições e práticas fiscais nos últimos cinco anos. Porém, esta é a melhor oportunidade para se reconhecer que ainda há muito por se fazer. A lei não é uma panacéia. A criação de um novo regime no trato das coisas e contas públicas nunca será uma obra acabada.

O sucesso da lei veio da superação constante de vários desafios. Isto foi conseguido explicitando problemas e erros, debatendo questões em público e negociando soluções. Só recordo que, contra a descrença de muitos, o Legislativo incluiu tal código na Constituição de 1988, pediu ao governo uma proposta quando apreciou a reforma administrativa, depois melhorou o projeto de lei e aprovou com quórum superior ao de emenda constitucional. Também no Judiciário, a matéria foi logo pacificada quando o STF rejeitou a ação do PT para derrubar a lei inteira ou 37 de suas normas.

Novos tempos, novos desafios a serem vencidos. Podemos resumi-los em quatro questões já postas na mídia:

1) Miopia do superávit primário: Ignorando que a lei pede metas para receita, gasto, dívida e resultado nominal, o governo federal só se fixa no superávit primário, que continua insuficiente para cobrir os juros, que muitos esquecem que também é uma despesa. Alguns ainda reduzem gestão fiscal à do caixa. No limite, isso acabou na falência da cidade de São Paulo.

2) Esconde-esconde: Alguns estados escondem receita (ICMS) em fundos extra-orçamentários para pagar menos ao Tesouro Nacional por conta da rolagem da dívida e ainda driblar a obrigação de aplicar em ensino, saúde e até mesmo repasse para seus municípios. Alguns poderes estaduais escapam do limite para folha de pessoal omitindo gastos com inativos e IR retido na fonte de seus servidores. Algumas pequenas prefeituras do interior, em final do mandato, escondiam gastos cancelando empenhos de serviços ou bens efetivamente adquiridos. Mas agora, com a prática chegando a grandes cidades, descobre-se que a gestão passada de São Paulo foi além, sequer orçando e contabilizando energia elétrica, água, esgoto consumidos e até mesmo empréstimo contratado (aliás, junto a uma empresa privada, que intermediava repasse de empresa estatal federal, driblando a vedação da lei fiscal a financiamentos entre governos).

3) Mágica da dívida: A dívida estadual e municipal refinanciada pelo Tesouro Nacional é supercorrigida pelo indexador (IGP), e a taxa de juros (6% a 9%) é muito superior ao crescimento da economia. Mesmo pagando R$16,4 bilhões em 2004 e quase sem acesso a novos créditos, estados e municípios fecharam o ano devendo R$31 bilhões a mais do que em 2003 (o saldo saltou de R$ 344 para 375 bilhões). Interessa ao governo federal que essa bola de neve cresça rápido e explosivamente, porque lhe permite fazer a mágica de reduzir sua dívida e seu déficit, uma vez que o passivo dos outros governos é descontado de sua dívida bruta. Mais curioso é que o próprio presidente Lula defendeu em coletiva a substituição do IGP como corretor de tarifas (telefonia e energia), mas nega o mesmo tratamento aos créditos que detém contra governadores e prefeitos, embora isto seja contemplado na legislação que autorizou as rolagens.

4) Pimenta nos olhos dos outros: A União responde por cerca de dois terços da dívida pública do país ¿ sozinha, devia mais de R$1,3 trilhão ao final de 2003. Porém, até hoje, não está sujeita ao menor limite, nem para sua dívida consolidada (Senado), muito menos para sua dívida mobiliária (lei ordinária). Hoje, qualquer governador ou prefeito pode ser cassado, ficar inelegível e até ser preso, mas nenhuma autoridade federal está sujeita a qualquer uma dessas penalidades, embora eleve diariamente a dívida dos brasileiros.

Os desafios são enormes. Mas as discussões continuam interditadas no governo federal. O máximo foi confessar o erro passado do voto contra a lei. Dizem que pior é insistir no erro. Os líderes do PT são os relatores dos projetos de leis que permitiriam concluir a regulamentação da LRF mas nenhum foi apreciado.

À Câmara caberia agilizar a aprovação do Conselho de Gestão Fiscal, para melhorar a transparência e a fiscalização, além de evitar as maquiagens. Também seria mais eficaz e imediato aprovar a lei que limita a dívida mobiliária federal do que sonhar com a independência do Banco Central. Ao Senado caberia fixar o limite da dívida consolidada da União e, junto, desatar o nó que infla a dívida estadual e municipal para reduzir a federal.

As perspectivas são otimistas. Se os impasses são inevitáveis, a democracia abre diferentes oportunidades de equacionamento. É preciso escancarar os problemas e abrir um debate franco. Só assim os desafios voltarão a ser superados e avançaremos ainda mais na responsabilidade fiscal. Mais do que mera lei, deve ser uma cultura. Mais do que retórica, deve ser prática no dia-a-dia de todos os governos.

JOSÉ ROBERTO R. AFONSO é economista e assessor parlamentar do PSDB no Congresso Nacional.