Título: `MODOS ANTIGOS DE GOVERNAR NÃO SÃO MAIS TOLERÁVEIS¿
Autor: Flávio Freire
Fonte: O Globo, 22/05/2005, O País, p. 8

Socióloga diz que mudou a percepção da corrupção

Doutora em sociologia, professora da USP e autora de vários livros, Flávia Schilling atribui a corrupção e o nepotismo aos antigos modos de governar, que misturam público e privado, e ainda têm lugar na jovem democracia brasileira. Hoje com 52 anos, Flávia Schilling foi um dos símbolos da campanha pela anistia política, nos anos 80. Ela ficou presa sete anos no Uruguai, acusada de se aliar aos tupamaros, os ativistas que usaram a guerrilha como tática.

Qual é a avaliação que a senhora faz da atual escalada de casos de corrupção no país?

FLÁVIA SCHILLING: Não é possível afirmar que há uma escalada de corrupção no país. Não há como medir se há um aumento ou não de casos, pois trata-se de práticas secretas, que aparecem a partir de investigações ou denúncias. O que é possível dizer é que há menos tolerância a casos de corrupção. Há mais investigação, mais atores, além da imprensa, mobilizados. Há, desta forma, mais visibilidade das práticas chamadas de corrupção, antes toleradas, o que pode dar a impressão de um aumento de casos. Trata-se de aumento de visibilidade de casos.

De um lado, temos os escândalos localizados, como de prefeitos e ex-prefeitos presos em Alagoas, o esquema de compra de votos no Estado do Rio, o caso de Rondônia. De outro, as denúncias que envolvem o governo federal, como a dos Correios e os casos do ministro Romero Jucá e do presidente do Banco Central, Henrique Meirelles. Como fica a imagem geral dos políticos no país, às vésperas do início de mais um processo eleitoral?

FLÁVIA: A imagem dos políticos é complicada há muitos anos. Creio que não é possível generalizar, creio que a população percebe diferenças existentes entre políticos. O Legislativo, concretamente, já definiu-se (na CPI da corrupção de 1992) como um poder sem poder: não legisla (quem legisla é o Executivo, com suas medidas provisórias), não representa, ou está em debate o que seria representação e quem seria representado, e resta seu papel de fiscalização do Executivo. Daí o aumento das CPIs ¿ único momento em que os políticos, no Legislativo, conseguem exercer uma função política e pública. Há um esforço nos últimos anos de criação de um modelo de gestão republicana, que implicaria uma separação da coisa pública da privada, na responsabilidade da gestão da coisa pública e na prestação de contas. Vemos avanços parciais neste movimento e retrocessos, não homogêneos. Não deixa de ser um avanço o papel do Ministério Público em sua nova função de fiscal do povo, da imprensa livre e de ações como o Governo Eletrônico, que geram maior transparência nas contas públicas. Porém, há muito caminho a percorrer.

Em três denúncias recentes (contra o ministro Romero Jucá, o presidente do Banco Central e agora o deputado Roberto Jefferson), o presidente Lula deu demonstração de solidariedade e de total confiança nos acusados. Quais os reflexos disso para a credibilidade do presidente?

FLÁVIA: A fala do presidente foi no sentido de esperar que a Justiça se pronuncie. Creio que, mesmo aceitando que ninguém é culpado antes de ser julgado, como se trata de uma República e devemos governar com a maior responsabilidade, pois se trata de bens coletivos, seria necessária uma ação, não condenatória, mas de preservação da imagem da gestão, afastando temporariamente aquele sob investigação.

No caso do deputado Roberto Jefferson, que foi da tropa de choque do ex-presidente Fernando Collor e que envolve os Correios e mesmo uma empresa, a Novadata, de um amigo do presidente, a situação fica mais grave?

FLÁVIA: Novamente creio que se trata de antigos modos de governar, que misturam o público com o privado, que já não são toleráveis. O mesmo problema apareceu de forma mais clara com a discussão sobre o nepotismo. Empregar o filho na empresa privada não gera prejuízo para todos: se a gestão do filho for desastrada, quem perde é a família do empresário. Quando se trata de uma empresa pública, não pode haver gestão desastrada, a nomeação deve ser por mérito, pois se trata de preservar e gerir algo que pertence a todos.

O presidente Lula assumiu o governo se comprometendo com o combate à corrupção. A imagem de seu governo fica desgastada com essa onda de denúncias e a possível impunidade? Historicamente, o que isso significa para a democracia brasileira?

FLÁVIA: A democracia brasileira é um processo, está em construção. Há avanços, nunca a sociedade brasileira foi tão ¿densa¿ de associações, organizações, reuniões, debates. Há impasses, por exemplo, por causa da gestão nada democrática ou antidemocrática da macroeconomia, em mãos de poucos senhores que não escolhemos como nossos representantes nem conhecemos. A luta contra a corrupção é uma parte desta luta por mais democracia, por mais transparência, por mais participação nas decisões. É um processo lento e coletivo.

E o papel do PT, estilingue histórico contra a corrupção no país, como fica?

FLÁVIA: Penso que há setores que continuam se importando e lutando pelo avanço da democracia.

Os parlamentares de esquerda do PT avaliam que o presidente Lula e o partido erraram na política de alianças. Em vez de buscar o apoio popular, montaram uma base de apoio fisiológica e sem fidelidade real ao governo, que agora repete escândalos comprometedores para o governo. O que a senhora acha disso?

FLÁVIA: Há problemas nas políticas de aliança. Parece difícil fazer aliança em torno de programas, de propostas. Volta-se ao velho sistema de troca de favores. Creio que é preciso coragem para romper com este sistema, que não é a única forma possível de governar.