Título: `Cabe ao presidente não ser protetor de ninguém¿
Autor: Flávio Freire
Fonte: O Globo, 22/05/2005, O País, p. 8

Para professor, Lula não pode expressar solidariedade a Jucá e Jefferson

Nos últimos 30 anos, Roberto Romano dedicou-se ao estudo da ética e da filosofia política. Professor titular da Unicamp, ele atribui a onda crescente de corrupção, entre outros fatores, à instalação de oligarquias no vácuo das relações entre o município e o poder central. Ele diz que o presidente Lula não pode expressar solidariedade a auxiliares que romperam com regras éticas e cita Norberto Bobbio para explicar a corrupção: ¿O poder custa, mas rende¿.

Muitas alianças políticas são feitas respeitando conveniências eleitorais e sem compromisso ideológico. Esse pode ser um dos fatores que explicam a corrupção na política brasileira?

ROBERTO ROMANO: Quando você faz uma aliança em municípios menores, não causa grandes abalos, mas quando se faz uma aliança para conquistar uma prefeitura média, a coisa muda de figura. O PT, por exemplo, tinha a percepção de que não podia comparecer para um pleito desta importância só com forças internas. E embora seja um partido apoiado por intelectuais e com grande militância no movimento universitário, nem todos esses quadros têm vocação política e administrativa. E aí precisa se aliar a quem nem conhece.

Há quem defenda no PT o afastamento do ministro Romero Jucá (Previdência) e do presidente do Banco Central, Henrique Meirelles, enquanto são investigadas as denúncias contra eles. Essa permanência no cargo não cria desconfiança no eleitorado?

ROMANO: Embora a imitação não explique tudo no comportamento humano, ela é importante quando falamos de massa. Quando você tem uma crítica permanente a um comportamento errôneo e aquela pessoa continua (no cargo), é claro que abre caminho para a mimese. É o ¿rouba mas faz¿. A vida real deixa de ter relação com a lei, com a Constituição, com os valores de bem e mal.

Como o senhor analisa o fato de o presidente Lula prestar solidariedade a Romero Jucá e ao deputado Roberto Jefferson em relação às denúncias que pesam sobre eles?

ROMANO: Trata-se de uma fala imprópria ao chefe do Executivo. Em regime presidencial, o governante acumula a prerrogativa de chefe de Estado. Sua magistratura é mais alta e ampla. Assim, ele não pode, enquanto magistrado, expressar solidariedade a pessoas acusadas de rompimento de regras éticas, morais, civis, bélicas, diplomáticas, etc. Cabe ao presidente o papel, muito espinhoso, de não ser amigo ou protetor de ninguém, visto que sua vigilância e imparcialidade devem imperar sobre todos.

As dificuldades para compor um governo com maioria na base parlamentar também podem ser consideradas um facilitador da corrupção?

ROMANO: Sim. Como diz Norberto Bobbio: ¿O poder custa, mas rende. Se custa, deve render. O jogo é arriscado pois algumas vezes o poder custa mais do que rende¿. Como a regra tem sido a desigualdade numérica entre os votos que o governante recebeu e os atribuídos pelos eleitores aos deputados que o apóiam fielmente, por ideologia ou por outros motivos, os votos necessários ao Executivo devem ser comprados.

A falta de maior fiscalização na relação entre municípios e estados com o governo federal abre espaço para esse tipo de comportamento?

ROMANO: Um sistema oligárquico se instalou entre o poder central e os municípios, de Norte a Sul do país. São oligarquias que servem de filtro transmissor dos recursos materiais e dos serviços entre o município e a União. Esses intermediários são permanentes e quase sempre se estabelecem no Executivo ou no Legislativo.

Mas são oligarquias que estão efetivamente sob vigília do Ministério Público.

ROMANO: Depois do regime militar, sobretudo após a Constituição de 88, criou-se uma idéia de autonomia dos poderes e das instituições. Isso levou, por exemplo, o Ministério Público adquirir a sua autonomia. Mas como é previsível, uma instituição que adquire poder novo tende a ultrapassar certos limites. E vários procuradores abusaram da sua força de pesquisa, o que de certo modo levantou a desconfiança em relação ao poder do Ministério Público.

O senhor está dizendo que essa desconfiança em relação ao trabalho dos promotores públicos levou à corrupção da classe política?

ROMANO: Tivemos a reação dos políticos a essa ação do Ministério Público. Nesses dois últimos anos, tivemos uma certa atenuação do vigor da apuração do Ministério Público e a Polícia Federal assumiu esse papel. Isso acentuou a possibilidade do ato impune.

Mas como fica o papel do Judiciário na fiscalização?

ROMANO: Outra coisa bastante importante é o fato de que alguns magistrados estão assumindo papel de censores. Os casos do (escritor) Fernando Morais e o da TV Globo em Rondônia são típicos. Alguns magistrados estão tentando impedir que o conhecimento desses casos chegue à opinião pública. São duas coisas que seguem paralelas: um açodamento daqueles que querem agir de forma errônea e, de outro lado, a excessiva cautela ou imposição por parte dos magistrados em relação ao Ministério Público.