Título: De olhos bem fechados para a violência
Autor: Paulo Marqueiro e Selma Schmidt
Fonte: O Globo, 21/05/2005, Rio, p. 16

Tráfico nas favelas assusta, mas não demove migrantes nordestinos de seus planos

Ela foi criada entre os mandacarus, conhece bem os espinhos: no dia 5 de abril, a evangélica Luciene Lima de Melo, de 38 anos, moradora da Rocinha, deixou de lado o coração e embarcou o filho Leandro, de 16 anos, num ônibus rumo à Paraíba. Foi a primeira vez que se separou dele. Fazendo o caminho inverso da mãe, Leandro foi trabalhar com um tio, cuidando de ovelhas em Campina Grande.

¿ Não quero que meu filho se misture. Trabalho fora e ele não queria estudar. Leandro vai passar um tempo na Paraíba. Quando amadurecer, ele volta ¿ afirma Luciene, que mora há 19 anos na Rocinha e conhece a rotina de violência da favela.

A decisão firme de Luciene mexeu com os sentimentos dos outros seis filhos, de 4 a 21 anos. Os mais velhos, Girlane, Alberi e Leandro, nasceram na Paraíba. Os menores, Leonardo, Sara e Jonas, são cariocas.

¿ O caçula (Jonas) chora muito e pergunta sempre pelo Leo. A gente tenta matar as saudades telefonando para ele aos sábados ¿ conta Luciene, que aos domingos freqüenta com os filhos a Igreja Obra da Restauração, na Rocinha.

Um estudo do pesquisador Marcelo Neri, do Centro de Políticas Sociais da Fundação Getúlio Vargas (FGV), com base no Censo 2000, mostra que os nordestinos representam apenas 6,2% dos presidiários do Rio, percentual que corresponde à metade da participação deles na população (12,2%). Quando se observam os migrantes de todas as regiões (inclusive do Nordeste), a proporção entre os detentos é de 14,2%, mais próxima da fatia que os retirantes ocupam no total de moradores (22%).

A realidade de violência costuma ser um choque para os nordestinos que chegam ao Rio. Às vezes, para não sufocar o sonho de uma vida melhor, eles são obrigados a manter os olhos bem fechados para o problema do tráfico. A paraibana Silvaneide Rodrigues da Silva, de 26 anos, que há cinco meses deixou Serra Branca ¿ cidade de 12 mil habitantes no interior da Paraíba ¿ para morar na Favela Nova Holanda, na Maré, diz que demorou a se acostumar com a rotina do lugar:

¿ Quando cheguei e ouvi aqueles tiros, tive vontade de ir embora correndo. Lá onde morava não tinha isso. As pessoas dormiam de portas abertas. Meus filhos tinham liberdade.

Silvaneide, que é casada e tem dois filhos ¿ um menino de 9 anos e uma menina de 7 ¿ diz que tinha conhecimento da violência no Rio: ¿A gente via nas novelas¿. E afirma que as pessoas na Paraíba já haviam alertado para o problema:

¿ Todo mundo falava: liberdade no Rio é de casa para o trabalho e do trabalho para casa.

A maranhense Roseane Borges dos Santos, de 21 anos, que de novembro do ano passado a janeiro deste ano morou na Favela Parque Royal, na Ilha do Governador, também diz ter ficado assustada com o que viu na cidade.

¿ Quando cheguei à favela, eram duas horas da madrugada e achei estranho porque o motorista de táxi entrou com os faróis apagados. Depois soube que é preciso esperar até o dia seguinte para entrar na favela somente de manhã.

No sertão, a imagem de um Rio violento

Apesar da traumática experiência no Parque Royal, Roseane planeja migrar de Caxias, no Maranhão, para o Rio assim que concluir os estudos. Ela cursa o terceiro ano do ensino médio e trabalha como doméstica, ganhando por mês R$60, o que poderia receber por uma diária no Rio.

No interior do Ceará, a imagem de um Rio violento também está sedimentada na cabeça das pessoas. Moradora de Varjota, a professora Cleine Dourado, de 32 anos, diz que sente vontade de conhecer a cidade, mas prefere não arriscar.

¿ Não sei se consigo voltar. A gente vê na TV que o Rio tem muito bandido ¿ afirma Cleine, que tem um irmão morando na Rocinha.

Apesar de ter se casado com uma carioca em 23 de abril, o marceneiro José Caubi Mesquita de Medeiros não pensa em sair de Santa Quitéria, no sertão cearense, para morar aqui.

¿ O que a gente ouve dizer é que o Rio é inseguro. Além disso, nasci e me criei em Santa Quitéria. Gosto muito daqui ¿ diz José .

A violência não será empecilho para que o cearense Nazaré Caetano Ramos, de 69 anos, saia do distrito de Macaraú, em Santa Quitéria, e volte a viver no Rio. De 1982 a 1994, ele morou em Cordovil, ao lado do conjunto Cidade Alta. No fim deste ano, Nazaré pretende acompanhar ao Rio a filha caçula Daiane, de 16 anos, que sonha cursar o ensino médio numa boa escola da cidade:

¿ Vou a qualquer lugar. Não tenho nada a ver com a vida dos outros ¿ afirma ele.

Sogra e vizinha de Nazaré em Macaraú, a dona de casa Maria Aurélia Rodrigues, de 72 anos, não quer saber nem de visitar o Rio. ¿ O Rio tem muito tiroteio ¿ justifica.

Morando há 37 anos na Baixada, o cearense Francisco Pereira Lima, de 55 anos, fez progressos no Rio. Ele é dono da Crateús Marcenaria, em Barros Filho, e já participou de mostras da Casa Cor. Mesmo diante do que o Rio lhe deu, o marceneiro, que mora numa casa própria em Mesquita, na Baixada Fluminense, pensou em voltar para Crateús, no Ceará, onde vivem sua mãe e cinco de seus oito irmãos. Francisco perdeu as contas do número de assaltos que sofreu. Só este ano foram dois: num deles, os bandidos entraram em sua casa e levaram aparelhos eletrodomésticos e o carro comprado há uma semana.

¿ Pensei em partir, mas não dá. Minha vida está toda aqui ¿ diz Francisco, que é casado e tem três filhos e dois netos cariocas.