Título: A forçado arbítrio
Autor: Xico Graziano
Fonte: O Globo, 24/05/2005, Opinião, p. 7
Aconteceu o esperado. Após 15 dias de marcha, entre Goiânia e Brasília, o movimento dos sem-terra conseguiu emplacar. Mais R$400 milhões serão aplicados pelo governo no programa de reforma agrária. Fora as demais promessas.
Governo e manifestantes bem se entenderam, como se fosse jogo combinado. Fizemos a nossa parte, orgulhava-se o líder do MST, feliz com o resultado das negociações. Enquanto isso, em Ribeirão Preto, campeava a tristeza.
Na Agrishow, o ministro da Agricultura utilizava seu reconhecido carisma tentando apaziguar os produtores. A maior feira de tecnologia agropecuária do país fraquejava, imersa na crise de rentabilidade que afeta o setor. Ninguém se anima a investir.
Na cabeça dos agricultores, pairava um sentimento de revolta. Eles também tinham feito a sua parte: especialmente entre 2001 e 2004, sua labuta segurou a economia. Da terra brotaram os dólares da balança comercial, o emprego que faltava nas metrópoles; a renda que movimentou o comércio.
Mas a bonança findou. Irrompeu a terrível seca no Sul, prosseguiu a queda do dólar. Despencou o mercado internacional, veio o aumento generalizado de custos. Uma somatória de azares derrubou a renda rural.
O sofrimento maior, porém, ainda estava por vir. Nenhum castigo é maior que o desprezo. Assim se sentem hoje ¿ desdenhados ¿ os produtores rurais brasileiros. As autoridades demoram a tomar medidas que poderiam amenizar a crise da economia agrária.
Quando os produtores rurais, ansiosos por boas notícias, presenciaram o governo atender, com presteza, ao MST, indignaram-se. As cooperativas sulinas estão quebradas, mas as organizações de sem-terra receberam um dinheirão.
O mais grave, porém, mora aqui. Premiando a estripulia dos sem-terra, o presidente Lula anunciou que vai alterar, para cima, os índices mínimos de produtividade no campo. Quer dizer, vai elevar o risco de desapropriação para reforma agrária. Por que isso acontece?
O método de ação política pode explicar. O MST é forte porque luta sem tréguas nem amarras, botando medo no Estado. Pouco lhe importa as regras da democracia representativa ou os ditames do Estado de direito. Justiceiros, invocam os cânones divinos e arrebentam cercas. Assim, na marra, ganham o respeito do poder.
Os agricultores, ao contrário, são pacíficos, respeitosos. No máximo, aprenderam a fechar estradas com tratores. Esparsos, sua capacidade de mobilização é pequena. Inexiste organização que os domine, bem como detestam se sujeitar ao mando. Gostam, mesmo, é de trabalhar.
Na Agrishow de Ribeirão Preto, enciumados com as conquistas dos sem-terra, os com-terra se questionavam sobre seu futuro. Não apenas na economia, mas também na política. Fazer o quê?
Tornar-se incendiário, certamente, está fora de propósito. No máximo, poderiam copiar os franceses, que, na hora do aperto, soltam gansos no centro de Paris. Imaginem uma passeata ruralista, recheada de tratores, a impedir o trânsito da Avenida Paulista. Ou, então, vacas tomando sol na Praia de Copacabana. Os jornalistas adorariam.
A causa, entretanto, precisa ser boa, correta, aceita. Esse é o grande dilema que espreme os agricultores. Preconceituosa, a sociedade sempre questiona suas reivindicações. Soma-se o temor contra os malandros rurais, contumazes em nunca pagar dívidas.
No MST, persiste ainda encantamento com sua luta. Alguns formadores de opinião, ao verem a marcha vermelha, alimentam uma espécie de fantasia retrógrada da revolução. Gera-se, assim, uma benevolência a perdoar o banditismo rural, uma ilusão a referendar o atraso despótico.
Tudo bem que se defenda a agricultura de subsistência contra a produção capitalista. Há quem, ainda hoje, propugne pelo socialismo no campo. Virou moda, entre os radicais, xingar os agronegócios, esquecendo-se de que a fome e a miséria moram na metrópole. Fazer o quê?
Inaceitável é ver a prevalência do arbítrio sobre a política, da foice sobre o trabalho. Menos que a economia rural, é a democracia brasileira que está em xeque.