Título: O CASO DO VOCABULÁRIO DOMESTICADO
Autor: Luiz Antonio Aguiar e Rosa Amanda Strausz
Fonte: O Globo, 26/05/2005, Opinião, p. 7

Em ¿O estranho caso do cachorro morto¿, de Mike Haddon, Christopher Boone sofre de uma forma de autismo. Quase todos os dias, ao descer de seu ônibus, Chris e seus colegas enfrentam o coro da garotada do colégio em frente: ¿Ne-ces-si-da-des-es-pe-ci-ais! Ne-ces-si-da-des-es-pe-ci-ais!¿ Chris comenta que aqueles garotos aprenderam bem a lição ¿ sabem que não devem zombar deles usando expressões politicamente incorretas.

Muito protesto tem sido levantado contra a cartilha de expressões politicamente incorretas elaborada pela Secretaria de Direitos Humanos. Os responsáveis pela publicação do índex de expressões indesejáveis afirmam que sua intenção é meramente educativa e que o documento não possui caráter normativo. No entanto, não se pode ignorar que o pensamento que a embasa já faz estragos em alguns setores da cultura, como ocorre na literatura infantil e juvenil.

Justiça seja feita, a Secretaria de Direitos Humanos não inventou nada. Errou por ter gasto dinheiro público numa bobagem, mas teve o mérito de trazer à tona uma discussão que já vinha se dando na surdina ¿ com efeitos muito mais deletérios e duradouros ¿ pelos corredores do mercado editorial.

No caso em questão, o Maleus maleficarum não foi inventado pelo governo petista. Não se trata de uma lista, nem de uma cartilha e não proíbe coisa nenhuma. É um documento bem intencionado, inovador em muitos aspectos, mas que mostra bem os caminhos que o ¿politicamente correto¿ percorre, na prática, quando sai dos papéis oficiais para entrar na vida. Chama-se ¿Novos parâmetros curriculares¿ e foi elaborado pelo MEC na gestão Paulo Renato ¿ a quem ninguém pode acusar de stalinista.

O documento parte do princípio de que é preciso ¿eleger a cidadania como eixo vertebrador da educação escolar¿, uma vez que as áreas convencionais ministradas pela escola ¿ a língua portuguesa entre elas ¿ não seriam suficientes para o ¿desenvolvimento das capacidades necessárias para a participação social efetiva¿. Isso significa ¿colocar-se explicitamente contra valores e práticas sociais que desrespeitem aqueles princípios, comprometendo-se com as perspectivas e decisões que os favoreçam¿.

Oito anos após sua publicação, é inegável admitir o estrago que os ¿Novos parâmetros curriculares¿ produziram na produção literária. Todo escritor sabe disso: uma vez soltos no mundo, os textos ganham vida própria ¿ e os oficiais mais ainda. Resultado: totalmente dependente das vendas escolares e governamentais, ambas regidas pelos parâmetros do MEC, o mercado cuidou de se adequar a elas. Sem uma conceituação clara para termos como ¿cidadania¿ ou ¿pluralidade cultural¿ ¿ para ficar só nesses ¿ vigorou o entendimento mais rasteiro.

Assim, hoje, muitas das grandes editoras possuem suas próprias listas de termos ou abordagens proibidas (que podem variar de acordo com o entendimento pessoal do coordenador da coleção). A lista está introjetada na cabeça de cada editor, que rejeita ou pede para que sejam reescritos os textos (ou imagens) que não sejam considerados adequados à função de propaganda de comportamentos desejáveis ¿ deixando de lado seu caráter estético e literário.

Com a cartilha lançada ¿ e já recolhida ¿ a plaina somente encontrou seu vocabulário oficial. Mas não se pode acreditar que ela seja inócua. Nenhum documento oficial o é, principalmente na área cultural, sempre tão sensível aos humores governamentais.

Se a questão é discutir o papel das palavras, é preciso que se diga que há um lugar privilegiado na literatura para o perverso e o disforme humanos, que a domesticação do vocabulário não resolve, e que não seria abafado se forjássemos, nas letras e artes, um mundo norteado pelo bom-tom.

Palavras em si são inócuas. Purificadas, também não são imunes à transformação pelas circunstâncias do uso. Só ganham significado quando lidas dentro do seu potencial de articulação ¿ com outras palavras e com o espírito que as compõe ¿ e ambivalência. O politicamente correto não é nada senão deficiência de leitura. Como fazer distinções? Com boa leitura. Como uma leitura apta ¿ e treinada ¿ a desvendar os significados múltiplos. Vão privar os leitores disso?

LUIZ ANTONIO AGUIAR e ROSA AMANDA STRAUSZ integram o Conselho Consultivo da Associação de Escritores e Ilustradores de Literatura Infantil e Juvenil.

N. da R.: Verissimo volta a escrever neste espaço em junho.