Título: UMA VISITA AO INFERNO BUROCRÁTICO
Autor: Benito Paret
Fonte: O Globo, 26/05/2005, Opinião, p. 7

Afalta de respeito da burocracia para com o contribuinte, no Brasil, é revoltante. Ainda agora, por um erro do INSS ao emitir o comprovante de rendimentos pagos a aposentados e pensionistas no ano 2004, mais de 1 milhão de contribuintes, entre eles milhares de idosos com dificuldades de toda ordem, estão obrigados a refazer suas declarações e entregar novamente ao Fisco. Ora, se o erro não foi do contribuinte e sim da fonte pagadora, caberia a ela, no mínimo, entender-se com o Fisco e fazer a retificação.

Sem qualquer pedido de desculpas pelo transtorno causado, os burocratas ainda vieram a público ameaçar com o atraso na restituição do imposto pago a mais, para quem não entregar a declaração retificadora no prazo. Ou seja: o governo arrecada além do que o contribuinte deve, já que reconhece o direito à restituição, feita meses depois, e ainda ameaça quem não corrigir no prazo o erro que ele próprio cometeu. Pior: quem, por erro do INSS, pagou imposto a mais em parcela única, terá que entrar com pedido de restituição.

Se os sistemas de informação do INSS e da Receita Federal fossem interligados e o governo desenvolvesse programas eficazes de retificação automática, o contribuinte não seria importunado, nem teria prejuízo.

A informática dispõe, hoje, de soluções para a maioria dos problemas dessa natureza. Mas a burocracia, salvo honradíssimas exceções, até mesmo em alguns aspectos da Receita Federal, só pensa no lado de lá do balcão. Do lado de cá, o freguês paga a conta e ainda tem que fazer o serviço pelo vendedor.

Estudo recente divulgado por uma consultoria especializada constata que em 2004 o governo publicou no Diário Oficial nada menos que 450 atos tributários. Foram 12 leis ordinárias, 11 medidas provisórias, 24 decretos e 4 portarias do Ministério da Fazenda. E a Receita Federal emitiu 105 instruções normativas, 38 atos declaratórios interpretativos, 239 atos declaratórios executivos e 19 portarias. Isso tudo num só ano.

O contribuinte que não queira infringir nenhuma norma, portaria, lei, medida provisória, decreto e outros tantos instrumentos de controle terá de se tornar leitor assíduo do Diário Oficial. Não fará outra coisa senão verificar o que mudou. Mas esse, dos problemas que essa parafernália causa, seria o menor. Mais difícil que acompanhar essa avalancha legiferante é compatibilizar as centenas, talvez milhares, de normas contraditórias, obscuras ou absolutamente dispensáveis.

O custo para o contribuinte ajustar-se a esse universo kafkiano é quase tão alto quanto a carga tributária que pagamos, em troca de serviços que muito deixam a desejar. É praticamente impossível uma empresa brasileira não cometer erros tributários. Milhares de contribuintes, pessoas físicas ou jurídicas, comprometem todos os anos boa parte de sua renda para pagar multas, juros e mora por erros cometidos sem dolo. E outro tanto no pagamento de pessoal de escritório, contadores, especialistas e advogados que lhe ajudem a errar menos.

A maior parte dessa montanha de leis, normas e regulamentos é de instrumentos de controle e fiscalização. Um aparato que poderia ser eliminado, em grande medida, com a adoção de sistemas automatizados que cruzassem dados, interligassem órgãos governamentais e fossem alimentados pelo próprio contribuinte, como se faz em muitos países civilizados.

Com a criação do Serpro, em 1965, e a reforma tributária que aconteceria, ainda no governo militar, o contribuinte imaginou que começavam, enfim, a tirar de seus ombros o peso dessa burocracia opressiva. Com a Sociedade de Usuários de Computadores, a Sucesu, nasceram os grupos Fisco-Contribuinte, dispostos a colaborar com soluções racionais que facilitassem as relações entre os contribuintes e o Estado. Cândida ingenuidade. Como é próprio dos regimes autoritários, nos anos seguintes os mecanismos burocráticos só fizeram crescer.

O aparato burocrático que controla a vida do contribuinte, hoje, no Brasil, é o mesmo criado nos piores anos da ditadura. O Brasil democratizou-se politicamente, estamos construindo, aos poucos, uma sociedade menos injusta, mas a democracia não permeou o aparelho de Estado. A cultura autoritária da burocracia brasileira permanece a mesma herdada do regime militar. A burocracia é uma forma de opressão.

O Estado brasileiro precisa de um choque de modernidade. E a democracia precisa chegar ao aparelho de Estado. As bases de dados de suas diferentes repartições deveriam estar interligadas, os mecanismos de controle informatizados e tornados mais amigáveis os sistemas de relacionamento com os contribuintes. A burocracia é própria dos Estados autoritários, controladores e corruptos. Quanto mais burocracia, mais corrupção. Quanto mais papel, carimbo, fila e despacho, mais se desenvolve a cultura de criar dificuldades para vender facilidades.

O contribuinte tem direitos que precisam ser respeitados. Paga seus impostos e por isso exige um aparelho de Estado que não lhe transfira responsabilidades, que lhe facilite a vida e lhe trate como cliente.

BENITO PARET é presidente do Sindicato das Empresas de Informática do Estado do Rio de Janeiro.