Título: INEFICIÊNCIA E INSATISFAÇÃO
Autor: Mario Cesar Flores
Fonte: O Globo, 26/05/2005, Opinião, p. 7

Asurrealista proposta do Executivo de aumento salarial de 0,1% para o serviço público, os abortados aumentos de 67% para congressistas e 15% para servidores do Legislativo, os aumentos da implementação do plano de cargos e salários do Judiciário e a emenda constitucional que eleva o teto de várias categorias, gerando pressões de outras, sugerem uma reflexão sobre a saga do salário público e sua desordem estrutural, reflexo da independência desarmônica dos três poderes.

Em 1989, assustado com as pródigas revisões salariais do Legislativo e do Judiciário no imediato pós-Constituição de 1988 e instado por seus quadros para fazer o mesmo, o Executivo enviou ao Congresso um projeto de lei que pretendia disciplinar a matéria. Pretendia esclarecer preceitos constitucionais abertos a interpretações prejudiciais às finanças públicas e à coerência, os fluidos conceitos de limites, isonomia, remuneração, vencimentos e vantagens, a ¿remuneração em espécie a qualquer título¿ e as ¿vantagens de caráter individual e relativas à natureza e ao local de trabalho¿. Também pretendia instituir as bases de um escalonamento racional e uma relação entre a maior e a menor remuneração pública, que reduziriam insatisfações e dariam dimensão social à ordem remuneratória.

A ajustagem aos parâmetros do projeto teria sido complexa. É difícil regular integralmente as difusas ambigüidades úteis aos interesses fortes, é difícil clarificar os ¿cargos com atribuições iguais ou assemelhados¿ dos três poderes e a correlação entre níveis civis e postos militares ¿ embora em alguns países isso esteja razoavelmente resolvido. Mas o que dizer da disparidade salarial entre (dois exemplos simples, emblemáticos) o motorista que dirige o mesmo tipo de carro no mesmo trânsito, para um juiz do Tribunal Superior ou Senador e para um ministro de Estado, entre as digitadoras de gabinete de juiz ou senador e de repartição do Executivo? Justificar-se-ia em casos como esses a ressalva constitucional sobre a diversidade decorrente de ¿vantagens... relativas à natureza e ao local de trabalho¿...?

O simples aumento geral do Executivo não resolveria o problema estrutural e agravaria o caos fiscal, que o Executivo via com clareza responsável. Impunha-se, portanto, um processo longo, de ajustes diferenciados, que contrariaria o preceito constitucional da revisão geral e simultânea pelo mesmo índice, correto se houvesse racionalidade na estrutura vigente e que seria retomado uma vez instaurada a racionalidade, mas tinha apoio em artigo das Disposições Constitucionais Transitórias. Apoio que, a salvo dos discutíveis direitos adquiridos, como admite o artigo, ajudaria a ¿liquidar¿ o moralmente trágico marajanato. Decorrido algum tempo, ter-se-ia uma ordem remuneratória atenta à saúde fiscal do Estado, equilibrada e justa.

O projeto a rigor feria a independência dos poderes e foi arquivado na Câmara dos Deputados, mas seu vício poderia ter sido sanado com a cooperação do Judiciário e do Legislativo. Passado o clima da Constituição nova, a solução sadia, abrangente e protegida do autismo fiscal pouco tem avançado. Esforços posteriores têm vivido tropeços, em particular no tocante ao teto, hoje em cerca de 70 salários mínimos. Vez ou outra são contempladas umas poucas categorias, mas essa via, eventualmente correta pela lógica da redução de anomalias, é solução parcial e insegura. Ela pode até ampliar distorções, quando beneficia os já desproporcionalmente mais bem remunerados no universo dos cargos com atribuições iguais ou assemelhados do serviço público e no universo salarial brasileiro em geral, como teria sido o aumento dos servidores do Legislativo, vetado pelo presidente. Por vezes ela reflete rendição a greves que, ainda não reguladas como manda a Constituição, fazem da vida nacional e do povo seus reféns e vítimas. Não estaria na hora de resgatar a idéia do projeto, aperfeiçoando-o sem desvirtuar seu propósito regulador e moralizador? A complexidade e a demora na implementação serão agora maiores, mas antes tarde do que nunca...

Para finalizar, um comentário sobre a relação entre ordem remuneratória e estrutura do serviço público. Uma e outra se complementam e se retroinfluenciam: se a organização de carreiras e cargos deixa a desejar, a boa e justa ordem remuneratória é inviável e vice-versa. A solução da saga do salário público precisa ser acompanhada pela melhora da organização do serviço público. Há que estruturar carreiras pautando-as por aferições de qualificação e mérito condicionadoras da ascensão e do exercício dos cargos que lhes são inerentes. Há que rever o livre comissionamento, com a redução do número e a adoção de critérios inibidores das injunções do clientelismo, do nepotismo e da política fisiológica. E há que regulamentar o direito de greve ¿ problema delicado no tocante às carreiras de Estado.

Se nada for feito, continuaremos a ter um Estado atribulado pela combinação de ineficiência e insatisfação no serviço público, indutora de medidas espasmódicas que mais complicam do que resolvem a questão medular.

MÁRIO CÉSAR FLORES é almirante-de-esquadra, na reserva.