Título: QUAL É A ÚLTIMA DO SEVERINO?
Autor: GERALDO TADEU MOREIRA MONTEIRO
Fonte: O Globo, 28/05/2005, Opinião, p. 7

¿Todas as coisas que se corrompem são boas¿ ¿ Santo Agostinho, Confissões, VII, 12.

Discutindo o problema da origem do mal, Santo Agostinho ensina que mesmo que Deus não tenha criado todas as coisas com idêntico grau de perfeição, juntas, elas demonstram a perfeição da Sua obra. Não há, portanto, nada da obra de Deus que não seja ¿bom¿, inclusive aquilo que parece ser mau.

Por outro lado, desde um ponto de vista psicanalítico, Freud e Breuer, nos Estudos sobre a Histeria, mostram que uma forte descarga de sentimentos recalcados, por mais dolorosa que seja, pode levar o paciente à cura, libertando-o dos sintomas patogênicos. A esse método chamaram ¿catarse¿. Mais uma vez, o que aparece como um mal, mostra-se no fim como um bem. É a partir deste duplo prisma que vamos analisar o papel do deputado Severino Cavalcanti na cultura política brasileira: como um mal que é um bem. Mais ainda, é Severino que vai nos ajudar a fazer a catarse dos ¿severinos¿ da política brasileira.

Desde sua eleição para a presidência da Câmara dos Deputados, Severino Cavalcanti trouxe para o proscênio político aquele país profundo, arcaico, retrógrado e cínico dos senhores de engenho, que acreditávamos extinto. O Severino-pessoa física, com seu arquétipo de coronel e do alto da secular impunidade da classe dominante, esbanja bravatas, usa abertamente de expedientes condenáveis, agride diariamente a consciência nacional com seus preconceitos e sua desfaçatez. Não é por acaso que desde o primeiro dia de seu mandato tornou-se mais uma figura do folclore nacional, prato predileto dos chargistas e tema obrigatório nas rodas de botequim: qual é a última do Severino?

Também pudera! Num dia, Severino festeja a nomeação do filho para um alto cargo e se regozija: ¿fiz um bem para o país¿! No outro dia, Severino indica o amigo do peito para o Conselho Nacional do Ministério Público, livra o outro amigo de um processo de cassação. Severino aumenta a verba de gabinete que, segundo ele, ¿não dá pra nada¿. Ah, sim, Severino põe um nepotista para cuidar da emenda antinepotismo. E amanhã tem mais!

Mas Severino é também ¿ data venia a boa doutrina ¿ pessoa jurídica, é o rei do baixo clero, dos ¿vereadores federais¿, dos ¿soldados rasos¿ que seguiam os generais de bancada. Mas o Severino-pessoa jurídica é também o presidente de um poder de Estado que tem sido subjugado pelos Executivos ao longo dos últimos anos, com seu arsenal de medidas provisórias, de contingenciamentos orçamentários e de insulamentos burocráticos. A representação popular não tem sido senão a carimbadora oficial dos atos administrativos do governo.

Um Congresso Nacional impotente para votar as leis, o orçamento e fiscalizar o governo acaba empurrando muitos deputados a tentar trocar seus votos pela liberação de uma verba aqui, outra ali. Mesmo que não justifique, o aviltamento do Legislativo explica por que Severino cresceu e apareceu.

Retomando o argumento inicial, vemos que Severino é, paradoxalmente, o espelho que reflete esse mundo de distorções que a política brasileira ainda abriga; que, ao encarnar todas as mazelas de uma parcela considerável da nossa classe política, Severino as denuncia; que, na sua franqueza rude, desmente os poderes, expõe sua hipocrisia; que, finalmente, ao representar de uma só vez todos os males da política brasileira, Severino, involuntariamente, nos conclama a uma cruzada contra o arbítrio, o clientelismo, a corrupção, o fisiologismo, o nepotismo, mas também contra o rebaixamento do Congresso, contra suas oligarquias e contra os desmandos burocráticos.

Nunca a sociedade brasileira esteve tão chocada e tão consciente dos problemas que infestam o nosso sistema político. E tudo graças a Severino, que nos proporciona uma grande terapia de massas pelo método catártico. Por isso mesmo, é hora de parar Severino, pois, como diria Santo Anselmo (¿Do Livre Arbítrio¿), se, por um lado, o universo é perfeito porque os bons são felizes, ¿não é menos quando para os pecadores existe punição¿.

GERALDO TADEU MOREIRA MONTEIRO é presidente do Instituto Brasileiro de Pesquisa Social (IBPS).