Título: BUROCRACIA E POBREZA COMO OBSTÁCULOS
Autor: Fernanda da Escóssia
Fonte: O Globo, 30/05/2005, O País, p. 14

Cartórios exigem, para registrar crianças nascidas em casa, declaração emitida por maternidade

RIO e FORTALEZA. A burocracia também dificulta a vida de brasileiros que querem registrar os filhos e, muitas vezes, não conseguem. Célia Maria Barbosa da Silva e o marido, Manoel Messias da Silva, até hoje nunca conseguiram tirar o documento da filha mais nova, Cleidilaine, hoje com 7 anos. Os cartórios exigem a declaração de nascido vivo, emitida pela maternidade. Mas Cleidilaine nasceu na casa dos pais.

¿ Foi muito rápido e não deu tempo de chegar à maternidade.

A garota está matriculada numa escola da região, porque os outros quatro filhos de Célia estudaram lá e a diretora conhece a família. Mas já avisou que não será possível levar a situação adiante por muito tempo, pois o documento é uma exigência legal.

¿ É um absurdo, minha filha não é cidadã dentro do meu país. Eu vou num dia, vou em outro, mas não há dinheiro que chegue para pagar tanta passagem de ônibus ¿ reclama a mãe da menina.

Em Fortaleza, depois de sete horas e meia à espera de uma ambulância, Elisabete Gomes de Araújo, de 25 anos, teve a filha em casa com a ajuda da cunhada. Ana Vitória, que completou 1 ano no último dia 5, ainda não foi registrada.

O único documento da menina é o cartão de vacinação. Assim como Elisabete, o ex-companheiro também perdeu a carteira de identidade. Para dar o nome do pai e da mãe a Ana Vitória, será preciso mais do que a segunda via dos documentos dos pais. Na falta da declaração de nascido vivo, fornecida quando a criança nasce na maternidade, também terão que levar três testemunhas ao cartório ¿ uma delas a parteira ¿ para garantirem que Ana Vitória de fato é filha de Elisabete.

Mas, mesmo com a cunhada e a parteira, ainda ficará faltando a terceira testemunha. O conselho tutelar recomenda que, nesses casos, as famílias chamem um vizinho. Mas aí há outro problema. O cartório cobra R$5 para reconhecer firma de cada testemunha e a maioria das pessoas que engrossa a fileira do chamado sub-registro é pobre ¿ no caso de Elisabete, miserável.

Analfabeta, desempregada e morando num casebre no bairro Bom Jardim, periferia de Fortaleza, ela sobrevive com R$65 do Bolsa Família. Quando o dinheiro acaba, Elisabete pede esmola nos sinais de trânsito. Ana Vitória é um retrato da pobreza. Com desnutrição moderada, não anda nem fala. Há cerca de quatro meses vem sendo acompanhada pelo Instituto de Prevenção à Desnutrição e à Excepcionalidade (Iprede), uma ONG.

A assistente social do Iprede, Marcy Braga de Menezes Beviláqua, diz que, em média, duas crianças vindas de vários municípios do estado chegam ao instituto sem registro civil. Ela orienta as mães a procurarem o conselho tutelar. Segundo Marcy, muitos pais perdem o documento de identidade, exigido pelos cartórios para tirar o registro civil das crianças.

Outro problema comum é o pai negar a paternidade. Para registrar uma criança, é necessário que um dos cônjuges compareça ao cartório com a certidão de casamento, a declaração de nascido vivo dada pela maternidade e suas carteiras de identidade. Se não forem casados no civil, os dois têm que comparecer levando o documento de identidade.

¿ Tem pai que, simplesmente, não quer se dar o trabalho de comparecer ao cartório ¿ afirma Marcy.

Nesses casos, segundo Maria Rubenísia de Almeida, do Conselho Tutelar da Secretaria Executiva Regional I, a mãe tem opção de registrar o filho só em seu nome ou procurar a Defensoria Pública para dar entrada num pedido de reconhecimento de paternidade. Rubenísia diz que há casos em que os pais, quando chamados a comparecer ao conselho, acabam concordando em registrar a criança. Quando se negam, o juiz pode pedir o teste de DNA.

(Fernanda da Escóssia e Isabela Martin)