Título: EM IPANEMA, A VIDA NUM BUEIRO
Autor: Erika de Castro
Fonte: O Globo, 30/05/2005, Rio, p. 15

Banhistas são surpreendidos por menores que saem drogados de buraco no calçadão

Nove e meia da manhã de ontem, Avenida Vieira Souto. Banhistas lotam a Praia de Ipanema, aproveitando o domingo de sol com clima de verão. O cenário é alterado por uma cena inesperada: menores de rua drogados saem de dentro de um bueiro, de cerca de 50 centímetros de diâmetro, num trecho do calçadão bem próximo à areia. O grupo ¿ três garotas e quatro garotos ¿ usa o bueiro como atalho para chegar a uma galeria de águas pluviais, onde moram, em frente à Rua Rainha Elisabete.

Moradores e banhistas assistiram assustados ao entra-e-sai de menores no bueiro. Ainda sobressaltado por ver a cena de tão perto, o aposentado Lúcio Saldanha, de 67 anos, morador de Ipanema, comenta:

¿ O bueiro é a porta da casa. Eles entram e saem com garrafas de cola e de solvente sem a menor preocupação de serem incomodados. A polícia e a prefeitura fingem não saber da existência do problema.

Drogas à vontade

A movimentação no bueiro começou por volta das 9h30m, quando um menor, aparentando 16 anos, abriu a tampa e observou a praia por alguns minutos. Logo depois, ainda com a cabeça para fora, ele gritou e mandou uma das meninas ir comprar jornal. A adolescente, aparentemente drogada, sai do buraco e corre até um jornaleiro na Rua Gomes Carneiro. Dez minutos depois, ela retorna e, com dificuldade, levanta a tampa e volta para o buraco.

Com medo de se identificar, um comerciante afirma que os menores não roubam ali perto, mas saem para assaltar nas ruas de Copacabana, Leme e Leblon.

¿ Eles moram aqui há cerca de dois meses e sabem que, se roubarem aqui por perto, vão chamar atenção. Na galeria, podem usar drogas tranqüilamente, dormir e até promover orgias como fazem durante a noite ¿ afirmou o comerciante, acrescentando que, normalmente, os menores saem do buraco por volta de meio-dia.

Um a um, eles, ontem, foram saindo do bueiro. Brincaram, pediram cigarro e dinheiro aos banhistas. E também xingaram quem reclamou da presença deles na praia. Para sair do local, o menor A., de 12 anos, que não tem os antebraços, teve a ajuda de outro menor, que seria o chefe do grupo. Quando todos estão reunidos, os sete menores sentam perto do calçadão. Uma das meninas cheira cola. O menor deficiente físico brinca na areia com um cachorro que também mora no bueiro. Desconfiado, ele responde a poucas perguntas.

¿ Sou da Baixada e moro aqui porque a vida é assim. Cavamos um túnel no bueiro para chegar até a galeria e ter tranqüilidade. A gente não rouba não, tia. É sério. A gente só pede dinheiro para comprar comida ¿ diz o menor para logo desistir de falar.

Um dos ambulantes contou que o menor perdera os antebraços quando caiu de um trem em movimento há cerca de dois anos.

¿ Ele serve de isca para o grupo porque as pessoas ficam com pena, dão dinheiro e comida ¿ afirmou o ambulante.

Prefeitura não sabia

A presidente do Fundo Rio, Marília Rocha, órgão ligado à Secretaria municipal de Assistência Social, responsável pelo recolhimento da população de rua, disse desconhecer que o bueiro na Avenida Vieira Souto estivesse ocupado por menores, o que classificou de novidade. Ela afirmou, entretanto, que recebeu denúncia da existência de problema semelhante numa galeria pluvial em frente à Rua Farme de Amoedo, em Ipanema. De acordo com ela, a prefeitura já instalou grades de ferro para evitar que algumas galerias pluviais fossem usadas como esconderijo.

Ontem à tarde, após tomar conhecimento do fato pelo GLOBO, a prefeitura enviou uma equipe de assistentes sociais até o local, mas os menores não teriam sido encontrados.

¿ Vamos conversar com cada um deles e tentar localizar a família. Mas a maioria desses menores já tem passagem pela polícia ¿ disse a presidente do Fundo Rio. ¿ Outra providência será saber se podemos lacrar as tampas de bueiros.

A Secretaria de Segurança Pública informou que, de janeiro a maio deste ano, a Delegacia de Proteção à Criança e ao Adolescente (DPCA) cumpriu 98 mandados de apreensão de menores, inclusive na Zona Sul. No mesmo período, a DPCA recolheu 720 crianças e adolescentes nas ruas e as encaminhou para abrigos do município. Em 2003, a operação Zona Sul Legal da secretaria descobriu 13 menores morando numa rede pluvial em Ipanema.