Título: FRANÇA DEIXA A UE EM CHOQUE
Autor: Deborah Berlinck
Fonte: O Globo, 30/05/2005, O Mundo, p. 26

País rejeita Constituição européia, abre crise política e torna incerto futuro do bloco

Arança rejeitou a Constituição européia, num referendo nacional carregado de emoção e polêmicas. O país, que é fundador da União Européia, pôs em dúvida agora o futuro da Carta e de sua influência no bloco. Nenhum partido, à esquerda ou direita, sairá ileso do escrutínio: com exceção do Partido Comunista, todos apostaram oficialmente no ¿sim¿, e erraram. O presidente Jacques Chirac é o grande perdedor, e acaba de ver eliminado o seu sonho (nunca admitido) de tentar um terceiro mandato em 2007. Segundo ele, que já anunciou que fará reformas no governo, o resultado ¿criará um contexto difícil para a defesa dos interesses franceses¿ dentro do continente.

O grupo de pesquisas CSA projetou que o ¿não¿ ganhou por 55,6% dos votos, baseado numa contagem parcial das cédulas. Já o instituto Ipsos calculou 55% para o ¿não¿ e o TNS/Sofres, 54,5%. Os partidários do ¿não¿ saíram em comemoração e tomaram conta da Praça da Bastilha.

O resultado explodiu como uma bomba no governo: espera-se que o primeiro-ministro Jean-Pierre Raffarin ¿ o político mais impopular da França -¿ seja substituído hoje. O mais cotado para o posto é o ministro do Interior, Dominique de Villepin. Outra candidata é a Ministra da Defesa, Michèle Alliot-Marie.

Partidos estão divididos

À esquerda, o estrago também é grande. O Partido Socialista, que encampou o ¿sim¿, sai em crise. A vitória do ¿não¿ mostrou a incapacidade do PS de unir o eleitorado de esquerda, três anos depois do fracasso nas eleições presidenciais de 2002. O número dois do partido, Laurent Fabius, se rebelou da cúpula e partiu em campanha pelo ¿não¿, enquanto François Hollande, secretário-geral, pregava o ¿sim¿. Fabius ganhou, comprometendo seriamente a pretensão de François Hollande de ser escolhido o candidato do partido para disputar a eleição presidencial de 2007.

O referendo mostrou uma classe política em turbulência. Partidos e até famílias políticas se dividiram. Danielle Mitterrand, por exemplo, mulher de François Mitterrand, o presidente francês que mais lutou pela Europa unida, fez campanha pelo ¿não¿. No mesmo campo dela, que é socialista, havia de tudo: da extrema direita a ultra-liberais nacionalistas e movimentos anti-globalização. Dentro do partido do governo, UMP ¿ oficialmente, em campanha pelo ¿sim¿ ¿ reinou a confusão. Enquanto Jacques Chirac apelava para os franceses aprovarem a Constituição como solução para controlar o liberalismo à la americana, Nicolas Sarkozy ¿ seu principal rival dentro do partido e forte candidato à Presidência em 2007 ¿ pregava a aprovação da Carta européia como uma forma de reformar o modelo social problemático francês.

Os franceses falam em crise democrática, e dizem que o primeiro alarme soou na eleição presidencial de 21 de abril de 2002, quando o líder da extrema direita, Jean-Marie Le Pen, chegou ao segundo turno do escrutínio, dando um susto na maioria da população, que correu para as urnas para reeleger Jacques Chirac.

¿ Estamos como antes de 1958. Tudo está desacreditado. O sistema político está comprometido ¿ dramatizou um deputado do partido do governo, UMP.

A prova de como este referendo mexeu com o país veio com a participação dos eleitores: mais de 66% uma hora antes do fechamento dos locais de votação, a maior dos últimos anos.

Os resultados caíram como um banho de água fria em toda a União Européia. O chanceler britânico, Jack Straw, também demonstrou preocupação diante do resultado francês.

¿ Precisamos de um tempo para reflexão ¿ afirmou ele.

Romano Prodi, líder da oposição italiana e ex-presidente da Comissão Européia, também demonstrou preocupação como o futuro da Carta européia.

¿ Estou muito decepcionado com o resultado. Mas acho que precisamos continuar lutando pela continuidade do projeto europeu.

O chanceler alemão Gerhard Schroeder, no entanto, fez questão de afirmar que a decisão não marca do fim da UE:

¿ O referendo é um processo democrático e justo. É preciso lembrar que a parceria entre França e Alemanha na UE continua.

O primeiro-ministro da Dinamarca (país que fará o referendo em setembro), Anders Fogh Rasmussen, deplorou o resultado.

¿ Trata-se de um fato lamentável para a União Européia. Mas posso afirmar que esses resultados não vão influenciar no nosso referendo, marcado para setembro. Não podemos nos guiar pelo que pensa a França. Precisamos lutar para consolidar a União Européia ¿ afirmou ele.