Título: Histórias de vidas sem registro
Autor: Fernanda da Escóssia e Ismael Machado
Fonte: O Globo, 29/05/2005, O País, p. 12

Três gerações de sem-documento sobrevivem em meio à miséria numa favela do Rio e num manguezal do Pará

No Rio, Rosângela, mãe de Patrícia, avó de Henrique, Patrick e Cauã. Em Quatipuru, no Pará, Antônia, mãe de Ana Lúcia, avó de Luís Fernando e Sandro. Separadas por cerca de 3.200 quilômetros, as duas famílias têm mais do que a miséria em comum: têm três gerações de brasileiros sem registro de nascimento. Pessoas que, mesmo contadas pelo Censo oficial, não existem oficialmente como cidadãs.

O problema dos brasileiros sem documentos está fora do alcance das estatísticas. O Brasil não dispõe de dados oficiais sobre o total de adultos e crianças sem registro de nascimento. A estatística mais fiel à realidade é a do IBGE: com base nos dados dos cartórios de pessoas naturais, é possível saber que cerca de 21,6% dos nascidos vivos em 2003 não foram registrados no mesmo ano nem nos três primeiros meses de 2004, o que dá em torno de 774 mil crianças sem registro.

À falta de estatísticas, O GLOBO procurou histórias de quem vive no limbo da cidadania. Em quatro estados ¿ Rio, Pará, Ceará e Pernambuco ¿ localizou em quatro dias 39 brasileiros sem registro, cujas histórias começa a contar hoje.

Numa família, 15 sem registro

Só na família de Rosângela Bruna, em Paciência, um dos bairros mais pobres do Rio, a 67 quilômetros do Centro da cidade, há 15 pessoas sem registro de nascimento. Desempregada, Rosângela vive num barraco de madeira que alagou na chuva de quarta-feira. Nasceu em casa e a mãe nunca se interessou em registrá-la no cartório. Rosângela, aos 39 anos, viveu até hoje de biscate, faxina ocasional, caridade e mendicância. Nunca foi à escola. É analfabeta. Nunca votou e não sabe quem é o presidente da República.

Rosângela teve quatro filhos. Andréia, 23 anos, André, 22 anos, Patrícia, 21 anos, e Flaviano, 18 anos. Não registrou nenhum. Patrícia, de três companheiros diferentes, tem três filhos: Patrick, de 3 anos, Henrique, de 1 ano, e Cauã, 4 meses, que nunca foram registrados. Ela guarda como documento as declarações da maternidade onde as crianças nasceram.

¿ Perdi a conta das vezes em que deixei de arrumar emprego porque não tenho documento ¿ diz ela, que não sabe o nome completo. ¿ Sei que o meu nome é Patrícia Clemente, mas não lembro o final.

No barraco de Patrícia, a água é de uma torneira no quintal. Não há geladeira e o fogão é a lenha, porque falta dinheiro para o gás. O chão de um canto da casa serve de banheiro.

A outra filha de Rosângela, Andréia, conseguiu se registrar depois de lutar dois anos na Justiça. Mas tem quatro filhas sem documento.

Num barraco do outro lado do esgoto mora Ednéia Geralda Bruna, irmã de Rosângela, que também nunca foi registrada. Sabe o nome porque alguém mais antigo da família, antes de morrer, deixou um papel amarelado com o seu nome e a data de nascimento escritos.

Ednéia teve quatro filhos. Paulo Roberto, 21 anos, Robson, 16, e Vinicius, 12, não são registrados. Só Davi, 9 anos, tem certidão, porque o pai registrou o filho. Aos 21 anos, Paulo Roberto guarda a prova de sua existência: a declaração da maternidade de Santa Cruz afirmando que ali, em 2 de maio de 1984, nasceu um bebê do sexo masculino, filho de Ednéia Geralda. Graças a essa papel ele sabe a idade.

Somando Rosângela, três filhos sem registro, sete netos, Ednéia e três filhos, a família tem 15 pessoas sem registro. Sem a certidão de nascimento não podem tirar identidade, CPF, carteira de trabalho, PIS nem título de eleitor.

¿ Este é um problema muito comum por aqui. É mais do que pobreza, é miséria. Ajudamos como podemos, com cestas básicas e cursos profissionalizantes, mas falta tudo aqui ¿ diz o padre Ausilio Chessa, da paróquia Jesus Salvador do Mundo.

Sem documento é a vida de Antônia Teixeira, em Quatipuru, no nordeste do Pará. Com 13 mil habitantes, o município é um dos mais pobres do estado. Antônia não sabe a própria idade. Não tem certidão de nascimento nem carteira de identidade. Os filhos Ana Lúcia, de 22 anos, e Rogério, de 14, nunca foram registrados. A família morava no meio de uma mata conhecida como Cristal, na quase inacessível floresta que rodeia parte do município. Há 12 anos, Antônia decidiu se mudar com a família para um bairro na periferia de Quatipuru:

¿ Era muita dificuldade lá. Se a gente caía doente, não tinha como fazer. Era só esperar para morrer.

Com a morte do marido, pescador, Antônia deixou de ser apenas pobre para cair na miséria quase total.

A família inteira sobrevive catando caranguejos num manguezal. Ninguém freqüentou escola. No barraco, não há móveis nem eletrodoméstico, só redes.

`Ter o que comer seria bom demais¿

Eles recebem uma cesta básica mensal doada por uma família de Quatipuru. Ana Lúcia, ou Lucinha, como gosta de ser chamada, espera o terceiro filho, mas nem sabe com quanto tempo de gravidez está. Os filhos mais velhos, Luís Fernando, de 6 anos, e Sandro, de 4 anos, nunca foram registrados. Os meninos passam o dia andando pela rua de terra batida. Buscam comida, já que muitas vezes é apenas um feijão ralo o que alimenta a família. Todos dormem em redes.

¿ Quando é época de caranguejo, a gente tira um dinheirinho ¿ diz Ana Lúcia.

Rogério quer o documento porque deseja estudar. Sonha em ser mecânico e ter uma televisão em casa. Mas Ana Lúcia não pensa muito nos documentos, ou na falta deles, para ela e os filhos:

¿ Ter o que comer todo dia já seria bom demais.