Título: A França decide seu futuro
Autor: Deborah Berlinck
Fonte: O Globo, 29/05/2005, O Mundo, p. 35

Referendo promete mudar hoje cenário político do país, seja qual for o resultado

A menos que as pesquisas errem, a França corre o risco de rejeitar hoje nas urnas a Constituição Européia. Sondagens indicam vitória do "não" com 52% a 56% dos votos, mas pode haver uma reviravolta neste cenário: os indecisos são 20%. A Carta foi feita para facilitar a integração dos 25 países membros da União Européia (UE), mas é percebida por muitos como uma guilhotina: o fim do generoso modelo social francês e a implantação no continente do ultraliberalismo americano.

A rejeição, se confirmada, pode arrastar outros países para o mesmo caminho, isto é, pode enterrar a recém-redigida Constituição, que só entra em vigor se ratificada por todos. O impacto político é enorme, pois os franceses são mais do que fundadores da Europa: são a essência do continente. Os críticos da Carta - à direita e à esquerda - torcem para que isso aconteça e dizem que a rejeição permitirá a emergência de outra Europa.

Mas com tantas forças irreconciliáveis misturadas - a extrema-direita, o Partido Comunista, liberais e movimentos anti-globalização -- resta a questão: que Europa querem os partidários do "não"?

Para o garçom francês David Amsellem, simpatizante do Partido Comunista, o ideal é uma Europa sem ricos ou capitalistas:

- O campo do "sim" à Constituição é dirigido por ladrões e incapazes. Todo dia a França afunda na miséria, e as mesmas pessoas enriquecem. E são os que enriquecem que defendem o "sim". Melhor sem eles.

Philippe de Villiers, líder do Movimento pela França, em campanha pelo "não", quer uma França soberana dentro de uma Europa bem capitalista comandada pelas grandes empresas. Já o deputado Henri Emmanuelli - um dos rebeldes do Partido Socialista que defende o "não" - quer uma europa social-democrata, que acredita estar se perdendo com a Carta, considerada ultraliberal.

- A maioria dos socialistas vai votar no "não" - aposta.

Como conciliar a Europa dos sonhos da extrema-direita de Jean-Marie Le Pen - fechada ao mundo e aos estrangeiros - com a de Pierre Ferrand, 55 anos, funcionário da estatal de trens SNCF, que vai votar no "não" e quer apenas uma Europa "mais humana"?

- Não sou contra a Europa. Só quero uma outra Europa, em que o povo esteja no centro, e não as finanças - diz Ferrand, que teme as privatizações.

Uma eventual vitória do "não" explodirá como uma bomba na vida política do país. Ninguém - da esquerda à direita - será poupado. O primeiro grande derrotado será o presidente Jacques Chirac, que apostou tudo na aprovação da Carta, e sofrerá um duplo golpe. Não só amargará o fracasso de não ter convencido os franceses da importância da adesão, como terá confirmada a impopularidade de seu governo - já que muitos optaram pelo "não" para penalizá-lo pelos problemas do país, como o desemprego, que atingiu 10,1%. Chirac deixou para a última hora - quinta-feira - um apelo aos eleitores em rede nacional de TV. Muito tarde, disseram alguns franceses.

Jean-Michel Thénard, editorialista do "Libération", escreveu: "Os eleitores hoje gritam vingança. Uma simples proposta do Executivo é suficiente para que se oponham. Chirac corre o risco de ser neste domingo aquele que deixou propagar a idéia de que a Europa é o liberalismo, quando é o mais social-democrata dos continentes, o mais preocupado com proteção social e com o direito dos trabalhadores, o mais seguro contra-peso à hegemonia americana e à concorrência asiática."

Em compensação, se o "sim" ganhar, Chirac triunfará. Vai mostrar que apesar de um cenário interno desfavorável - o crescimento econômico na França se aproxima de zero - ainda tem a palavra final. E poderá buscar seu dito sonho (nunca confirmado) de disputar um terceiro mandato em 2007. Seja qual for o resultado, prevê-se uma brutal recomposição da cena política francesa. A começar pela substituição do primeiro-ministro Jean Pierre Raffarin, o homem de governo mais impopular hoje na França.

"As mudanças vão ser profundas, mesmo que o 'sim' ganhe", previu o presidente do UDF, partido de direita, em campanha pelo "sim", em entrevista ao "Le Figaro".

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CORPO A CORPO

PASCAL LAMY

'Os franceses estão com problema de ótica'

PARIS. Ele acaba de ser eleito diretor-geral da Organização Mundial de Comércio (OMC). Pascal Lamy, socialista em campanha pelo "sim" à Constituição, diz ao GLOBO que os franceses não conseguem ver a Europa em relação ao mundo - um modelo menos liberal que os outros e que, segundo ele, deu certo. Ele não assume a derrota.

Ninguém, à direita ou esquerda, parece acreditar mais na vitória do "sim" à Carta. Por que vocês fracassaram?

PASCAL LAMY: São os eleitores, e não as sondagens que decidem. Houve muito debate na França. Mas só se discute a Europa profundamente na forma de espasmos: a cada dez anos. A última vez foi Maastricht. Se o "sim" passar, isso significa que, apesar de um clima extremamente desfavorável, a perspectiva da construção européia vai ser mais forte do que esta vontade de enviar um sinal negativo ao governo.

E se o "não" ganhar...

LAMY: Isso significa que a perspectiva de construção européia será esmagada pelo sentimento de vingança do povo. E se explica por uma situação econômica interna que não é boa.

Quais as conseqüências para a França? Segundo muitos, sua influência seria reduzida na Europa...

LAMY: Isso é provável. Mas também só poderemos avaliar quando os outros países se pronunciarem. Aí poderemos interpretar claramente o sinal que a França vai enviar (à Europa): é um sinal de defensor de soberania, um sinal federalista, de direita, de esquerda?

Os franceses se queixam de uma Europa ultraliberal, no modelo americano. Temem que pessoas como o senhor abram os mercados e permitam que a mão-de-obra barata polonesa invada o país. Como o senhor responde a estes temores?

LAMY: Tentando explicar o que se passa em outros lugares fora da Europa. Se há neste planeta um continente que é menos liberal que os outros, mais regulamentado, e com mais equilíbrio entre economia, sociedade, direito humano, direito da mulher, é a Europa. É este o modelo europeu. Os franceses estão com problema de ótica. Eles olham a França em relação à Europa, mas não vêem a Europa em relação ao resto do mundo. É preciso perguntar aos americanos, asiáticos e africanos o que eles acham da Europa: em geral, pensam que a Europa é um lugar onde é menos difícil de viver.

Quase todos os partidos apoiaram o "sim", mas o povo aparentemente caminha para o lado contrário. Vai haver uma recomposição política na França?

LAMY: Haverá certamente turbulências, à direita, à esquerda e mesmo no centro. (D.B.)

CORPO A CORPO

MARIE-GEORGE BUFFET

'Temos o direito de não querer esta Europa'

A deputada Marie-George Buffet, secretária-geral do Partido Comunista Francês, tem sua sorte lançada neste referendo: ela comanda o único partido de esquerda oficialmente contrário à Carta européia. Se sair vitoriosa, seu partido se fortalece. Em entrevista ao GLOBO durante campanha no centro de Paris, ela sustentou: a Europa é vítima do liberalismo.

Já está ganho, já encerrou?

MARIE-GEORGE BUFFET: Não, continuamos a discutir com as pessoas. Vamos estar em vigília, nos mobilizar nos locais de votação e na contagem. Até domingo (hoje) à noite, vamos lutar pelo "não".

Como explicar este enorme debate popular?

BUFFET: Os franceses não agüentam mais uma Europa que trabalha contra eles, uma Europa ultraliberal, e querem dizer isso neste referendo. Há muito não víamos tal debate popular neste país. Por onde você anda, as pessoas falam com você, perguntam.

O presidente Jacques Chirac disse que votar "sim" é defender uma Europa mais social, defender o modelo da França. Por que a senhora é contra?

BUFFET: Porque isso é falso. O presidente mente. O projeto constitucional incorpora os tratados que nós conhecemos, que são tratados liberais. E a Europa social? É a Europa da livre concorrência que querem nos impor. E é isso que os franceses rejeitam.

Chirac diz também que o "não" vai dividir a Europa completamente.

BUFFET: Se eu entendo bem, é preciso dizer "sim", porque não temos escolha. Mas não, temos o direito de dizer que não queremos esta Europa, e que queremos uma outra.

Qual sua última mensagem aos eleitores?

BUFFET: Não deixem que os outros roubem sua vitória. Vá até o final, e sobretudo, vá votar. Leve às pessoas para às urnas para que eles votem. Quanto mais votos para o "não", melhor será.

O que acontecerá se o "não" vencer?

BUFFET: Será uma nova oportunidade para a Europa. A Europa hoje está separada de seus cidadãos porque eles (os tecnocratas da UE) têm a impressão de que a Europa se resume à elaboração de diretrizes e regulamentos, à supressão das conquistas sociais e ao serviço público. Com o "não", o povo talvez retome o comando da Europa, e isso é uma boa coisa.

E se o "sim" ganhar?

BUFFET: Temos que lutar contra isso, porque a direita vai sair reforçada. E sabemos do golpe que a direita (o governo) vai tirar da gaveta: o orçamento de 2006. (D.B.)