Título: A face do 'Garganta Profunda'
Autor: José Meirelles Passos
Fonte: O Globo, 01/06/2005, O Mundo, p. 28

Ex-diretor do FBI revela ter sido a fonte jornalística que levou à renúncia de Nixon

Trinta e três anos depois, o mais bem guardado segredo jornalístico dos EUA foi finalmente revelado ontem: Bob Woodward e Carl Bernstein - repórteres do "Washington Post" que provocaram a renúncia do presidente Richard Nixon com uma longa série de reportagens sobre o Caso Watergate - confirmaram que W. Mark Felt, o então número dois do FBI (polícia federal americana) era Deep Throat (Garganta Profunda), nome com o qual identificavam a principal fonte de informações que lhes permitira exibir, de forma incontestável, as irregularidades cometidas por Nixon.

Não restava outra alternativa aos dois jornalistas, depois de o próprio Felt - hoje com 91 anos - romper o sigilo. E ele o fez na imprensa. O policial aposentado, que vive em Santa Rosa, na Califórnia, contou o segredo à revista mensal "Vanity Fair", que chegou ontem às ruas com uma reportagem intitulada "Sou o sujeito que chamavam de Garganta Profunda".

Dupla promete revelar detalhes

Até então, Felt fazia parte de uma lista de 14 pessoas que volta e meia eram mencionadas em artigos, livros e palestras como suspeitos de terem sido o informante cuja identidade Woodward e Bernstein tinham decidido só revelar após a morte dele. Enquanto o primeiro se manteve calado, Bernstein emitiu ontem de manhã um comunicado reafirmando a posição, e acrescentando que após a morte da fonte a dupla também revelaria detalhadamente seus contatos com ela.

No fim da tarde, porém, depois de conversarem com Ben Bradlee, que era editor-chefe do "Post" na época do escândalo de Watergate, os dois jornalistas divulgaram uma curta nota confirmando que Felt era o Garganta Profunda e os ajudou "de forma incomensurável" em sua cobertura. Por sua vez, o jornal informou em sua versão on line que Woodward começou a escrever um artigo - a ser publicado amanhã - com "um depoimento pessoal sobre sua experiência e a de Bernstein" na cobertura de Watergate.

- O que mais me espanta é que este maldito segredo tenha durado tanto tempo - comentou Bradlee, como se sentisse aliviado.

Ele contou que só soube a identidade da fonte duas semanas depois da renúncia de Nixon. Até então os repórteres tinham lhe dito apenas que o informante era um alto funcionário do FBI.

- Eu conhecia a posição da fonte (no governo), e sabia que o jornal estava no caminho certo. A qualidade da fonte era muito boa. A firmeza como ela nos mostrava o caminho me garantiu que estávamos bem - disse Bradlee.

Revelação para ganhar dinheiro

Segundo a "Vanity Fair", Felt já revelara o segredo ao filho Mark em 2002. Disse que era algo do qual não sentia orgulho "porque não se deve vazar informações a ninguém". Para a família, no entanto, ele foi um herói, pois conseguiu mudar a história do país. Sua filha Joan contou ter desconfiado de algo quando, em 1999, Woodward apareceu em sua casa à procura de seu pai. Felt sofrera um derrame cerebral meses antes e o recebeu com alegria: "Parecia mais uma celebração entre dois velhos amigos do que uma conversa entre um repórter e um ex-policial", disse ela, acrescentando que Woodward levou o pai para almoçar num restaurante onde ambos podiam conversar sem testemunhas.

Felt revelou publicamente o segredo por insistência dos filhos. Capitulou depois de Joan lhe dizer que a história poderia trazer benefícios à família, conforme a "Vanity Fair": "Bob Woodward vai ficar com toda a glória por isso, mas poderíamos ganhar pelo menos algum dinheiro para pagar algumas contas, como a dívida que acumulei com a educação de meus filhos. Vamos fazer isso pela família", disse ela. O pai cedeu: "É uma boa razão", afirmou, embora não estivesse interessado em revelar o segredo, segundo o filho.

BOXE EXPLICATIVO

> O escândalo que derrubou o presidente dos EUA

O escândalo mais famoso da História começou em 17 de junho de 1972, quando um porteiro noturno do Edifício Watergate, em Washington, flagrou um arrombamento e chamou a polícia. No prédio, onde ficavam os escritórios do Partido Democrata, um grupo de homens foi preso. Entre os detidos estava James McCord, ex-agente do FBI e da CIA e então responsável pela segurança do Comitê para a Reeleição do Presidente (CRP), que trabalhava para que o republicano Richard Nixon ganhasse mais um mandato à frente do país nas eleições de novembro.

As investigações descobriram que aquela invasão já era a segunda e que grampos haviam sido instalados e documentos fotografados na sede democrata com o intuito de espionar o partido. Tudo sob o comando direto de John Mitchell, chefe do CRP.

Nixon logo procurou distanciar o governo do escândalo, apesar de documentos encontrados com os arrombadores incriminarem Gordon Liddy, ex-FBI, e Howard Hunt, ex-CIA, ambos funcionários da Casa Branca. Dias depois, Liddy foi demitido por se recusar a depor no FBI e Mitchell renunciou.

Em 15 de setembro, os cinco presos em flagrante e mais Hunt e Liddy foram indiciados por conspiração, roubo, espionagem e escuta ilícita de conversas telefônicas. No entanto, não podiam ser provadas ligações incontestáveis entre eles e funcionários graduados da Casa Branca.

Foi então que entraram em cena dois repórteres do "Washington Post", Bob Woodward e Carl Bernstein, que em outubro iniciaram uma série de reportagens em que tentavam provar que a invasão de Watergate não fora uma ação isolada, e sim parte de um grande plano de sabotagem contra o Partido Democrata. Apesar de o caso começar a ganhar cada vez mais espaço na imprensa, Nixon foi reeleito.

Bernstein e Woodward contaram com a ajuda de um informante secreto - Deep Throat - para desvendar o caso. Em seu livro "Todos os homens do presidente", os dois contam que o Garganta Profunda, com quem Woodward se encontrou sete vezes, era um "fofoqueiro incurável". As reuniões geralmente eram de madrugada, por volta de 2h, numa garagem subterrânea. Receoso de estar sendo vigiado, o informante, quando queria falar com Woodward, desenhava um relógio numa cópia do "New York Times" que enviava ao apartamento do jornalista. Woodward, por sua vez, quando queria encontrá-lo, botava um vaso com uma bandeira vermelha na sacada de seu apartamento.

À medida que o cerco se fechava em torno do presidente, mais desesperado ele ficava e se recusou a entregar ao Congresso americano gravações de suas conversas que comprometeriam sua equipe. O presidente chegou a mandar para a comissão investigadora fitas sem 18 minutos e meio de conversas. Pressionado, ele liberou mais de 1.200 páginas de transcrições, mas o Congresso insistiu em ter acesso às gravações originais.

Em julho de 1974, a Suprema Corte determinou que Nixon entregasse o material aos investigadores. Menos de um mês depois, em 8 de agosto, Nixon anunciou a sua renúncia.

O impacto do caso foi tamanho que o sufixo "gate" passou a ser usado em várias línguas para designar escândalos mundo afora.

Legenda da foto: O EX-NÚMERO DOIS do FBI nos dias de hoje: segredo revelado a pedido dos filhos