Título: PUDIBUNDA É PALAVRÃO?
Autor: M Pio Corrêa
Fonte: O Globo, 02/06/2005, Opinião, p. 7

A Cartilha recentemente distribuída pela Secretaria de Estado dos Direitos Humanos, e logo recolhida diante da gargalhada homérica que sacudiu a nação, era indubitavelmente um documento judicioso e oportuno. Ela visava a escoimar da linguagem falada ou escrita quaisquer expressões inconvenientes quer por politicamente incorretas, quer por ofensivas a determinadas espécies ou categorias profissionais.

Assim caiu sob a interdição governamental a palavra "veado", quando se referindo a homossexuais. Estes devem ser qualificados presumivelmente como "pederastas", para não ofender a respeitável família dos cervídeos, na qual não ocorre normalmente qualquer perversão sexual. Do mesmo modo ficaria proibido, nas dificuldades do trânsito urbano, gritar a palavra "barbeiro" a um motorista culpado de uma manobra desastrada. As autoridades competentes preferem, aparentemente, que esse motorista infeliz seja apostrofado com expressões mais fortes, inclusive alusões a sua progenitora.

Seriam igualmente proscritas pelo Index Lulensis todas as referências à cor negra. A Cartilha citava, como exemplo, a expressão "as coisas estão ficando pretas". Assim, nos manuais escolares de geografia, o Mar Negro passaria a figurar como "Mar Escuro", e no conhecido samba "Negra do cabelo duro" a primeira palavra da letra seria substituída por "Afro-brasileira". O mesmo ukase fulminava a expressão "cabeça chata" para designar nossos compatriotas nordestinos, que passariam a ser conhecidos simplesmente como "platicéfalos".

Era proscrita igualmente a palavra "palhaço", quando usada figurativamente para ridicularizar alguém. Foi felizmente poupada, porém, a palavra "palhaçada", o que permite qualificar adequadamente eventos como a Reunião de Cúpula da América Latina com os Países Árabes, ou o desopilante projeto da criação de um Eixo Sul-Sul, frutos de uma espécie de ingênua megalomania, um tanto pueril, que parece tomar raízes em Brasília.

O próximo passo, na defesa da castidade e da pureza de nosso idioma, e da moral pública e dos bons costumes deve, logicamente, ser uma segunda Cartilha, a ser aplicada sob a vigilância da Agência Nacional competente, com uma lista dos vocábulos que não devem ser publicados. O primeiro deles, bem entendido, deve ser a palavra "censura", altamente incorreta politicamente.

Já tivemos, no passado, um governo algo severo que resolveu confiar à polícia o exame prévio dos textos destinados a publicação pela Imprensa. A isso chamava-se então, despudoradamente, "censura", e sobrecarregou de trabalho as autoridades policiais, levando-as a convocar para o exercício da tarefa até os servidores menos graduados e menos instruídos, muitos deles claramente ultrapassados em seus conhecimentos pelas exigências da missão. Assim ocorreu o episódio, perfeitamente autêntico, da consulta de um investigador de polícia, erigido em censor, ao delegado seu superior hierárquico: "Doutor, pudibunda é palavrão?"

M. PIO CORRÊA é embaixador aposentado.