Título: CCJ APROVA QUEBRA DE PATENTE DE DROGAS DA AIDS
Autor: Isabel Braga
Fonte: O Globo, 02/06/2005, O País, p. 8

Se não houver recurso, projeto vai diretamente para o Senado. Relator diz que direito à vida prevalece sobre propriedade

BRASÍLIA. A Comissão de Constituição e Justiça (CCJ) da Câmara aprovou ontem projeto que autoriza o governo a quebrar patentes de medicamentos para o tratamento da Aids. A votação, simbólica, foi unânime. O projeto tem caráter terminativo e poderá seguir para a apreciação no Senado se nenhum deputado recorrer e obrigar à apreciação pelo plenário da Câmara.

O Ministério da Saúde vem travando uma luta com laboratórios estrangeiros que fabricam medicamentos do coquetel anti-Aids para que aceitem o licenciamento voluntário. Isso permitiria que laboratórios brasileiros, públicos ou privados, produzissem os medicamentos a preços menores.

Nove dos 15 remédios do coquetel não têm patente

O autor do projeto, deputado Roberto Gouveia (PT-SP), diz que a proposta não rompe acordos internacionais porque a Lei de Patentes, sancionada em 1996, já estabelece como não patenteáveis produtos necessários à saúde pública. O projeto apenas torna mais explícita a proibição de reconhecimento de propriedade intelectual sobre os medicamentos específicos para Aids.

- Precisamos aprovar com urgência para evitar o estrangulamento da distribuição do coquetel anti-Aids. Assim que a lei entrar em vigor, as empresas e os laboratórios públicos brasileiros, poderão produzir os medicamentos localmente, como genéricos - disse Gouveia, explicando que o coquetel anti-Aids tem 15 medicamentos, dos quais nove não têm patente.

O deputado destaca que a Aids adquiriu características de doença crônica e o coquetel aumentou a expectativa de vida dos pacientes. Como os pacientes tomam os medicamentos de forma continuada, muitos acabam não fazendo mais efeito e têm de ser substituídos por novas drogas, com patentes. O deputado afirma que quatro dos medicamentos do coquetel estão consumindo 70% dos R$950 milhões destinados pelo ministério este ano à essa finalidade.

- Só o tenofavir, uma droga nova, é vendido 9,7 vezes acima do custo, um lucro de 1.000% - disse Gouveia.

O coordenador do programa do ministério, Pedro Chequer, diz que os laboratórios brasileiros podem produzir, de imediato, quatro dos principais anti-retrovirais do coquetel: efivarenz, nelfinavir, litonavir-lopinavir e tenofavir. Hoje, 156 mil pessoas recebem gratuitamente o coquetel no Brasil.

O relator do projeto na CCJ, deputado Antonio Carlos Biscaia (PT-RJ) sustentou a constitucionalidade da medida, questionada por representantes de laboratórios internacionais.

- Além do direito à vida prevalecer sobre o direito à propriedade industrial, o Brasil assinou a declaração de Doha, que ressalva que a saúde pública deve ter primazia sobre os interesses comerciais para que países em desenvolvimento possam assegurar a todos seus cidadãos medicamentos com preços acessíveis - afirma Biscaia.

AMEAÇAS ANTIGAS

O ex-ministro da Saúde José Serra passou os últimos anos de sua gestão ameaçando quebrar patentes de remédios para tratamento da Aids. O ex-presidente Fernando Henrique Cardoso chegou a assinar um decreto que, em caso de crise grave de desabastecimento de algum produto, autorizava o governo a negociar com o laboratório detentor da patente critérios para o chamado licenciamento compulsório.

O governo negociaria o tempo que o setor público poderia ficar livre para produzir o remédio cuja patente é de propriedade de um laboratório estrangeiro. A quebra da patente não chegou, no entanto, a ser posta em prática. Em algumas ocasiões, Serra conseguiu, com as ameaças, obter a redução dos preços dos remédios. Foi o caso, em 2001, do Nelfinavir, droga que integra o coquetel usado no combate à Aids.

O licenciamento compulsório foi contestado pelo governo americano na Organização Mundial do Comércio (OMC). Os dois países acabaram assinando um acordo pelo qual o Brasil se comprometeu a avisar antecipadamente aos Estados Unidos sobre possíveis licenças de patentes registradas por indústrias farmacêuticas americanas.

O mesmo procedimento já foi usado pelo atual ministro da Saúde, Humberto Costa, que ameaçou quebrar a patente de alguns remédios e também conseguiu redução nos preços. Costa fez a ameaça também em relação ao Nelfinavir, fabricado pela empresa suíça Roche.

Em fevereiro, Costa foi criticado porque houve falta de medicamentos do coquetel para distribuição nos estados. Ele foi até acusado por um ex-subordinado de ter sido avisado do risco de desabastecimento dos remédios.

Legenda da foto: CHEQUER: o coordenador do programa diz que Brasil poderá produzir remédios assim que lei for aprovada