Título: O PROCURADOR PISOU EM FALSO?
Autor: Luiz Paulo Horta
Fonte: O Globo, 05/06/2005, Opinião, p. 7

Por ter entrado com ação direta de inconstitucionalidade contra o artigo da Lei de Biossegurança que autoriza pesquisas com células-tronco embrionárias, o procurador-geral da República, Cláudio Fonteles, está sendo acusado de deixar-se influenciar por suas convicções religiosas. Acho injusto.

É verdade que a visão religiosa produz uma sensibilidade especial para certas coisas ¿ como, por exemplo, o valor incalculável de uma vida humana. Foi por acreditar nesse valor que os primeiros cristãos, no tempo dos imperadores romanos, defenderam a integridade e a dignidade dos escravos, quando ninguém falava em direitos humanos.

Mas não é preciso ser religioso para pensar e agir como o procurador Fonteles. O ponto em discussão é que o uso, para pesquisas, de células-tronco embrionárias supõe a destruição do embrião (o óvulo já fecundado), o que não acontece quando se utilizam, por exemplo, células-tronco adultas ou células extraídas do cordão umbilical.

A Lei de Biossegurança ¿ enorme pacote que misturava coisas tão diferentes quanto transgênicos e células-tronco ¿ bateu o martelo em favor da total liberdade de pesquisa. Contribuiu para isso um forte movimento de opinião pública, no que chegou a se caracterizar como uma campanha. Mas é duvidoso que um assunto como este deva ser decidido com base em campanhas, ou em emoções fortes.

Do ponto de vista religioso, destruir um embrião é destruir uma vida humana ¿ e, portanto, inadmissível. Mas a questão levantada pelo procurador-geral continua perfeitamente válida se trabalhamos apenas com a vertente ética ou filosófica da questão. Os campos que aqui se enfrentam poderiam ser divididos, grosso modo, em ¿idealistas¿ e ¿pragmáticos¿. Falemos primeiro dos pragmáticos. Um cientista honesto e competente poderá olhar bem nos seus olhos e dizer: ¿Entre preservar um monte de células que eu não sei se já formam uma vida humana ou proporcionar a cura de uma pessoa vivente, que está sofrendo, eu fico com a segunda hipótese.¿ Parece irrespondível. Pelo menos, é para esse lado que tendem a inclinar-se, hoje, os nossos corações e mentes.

Desdobrando o argumento, o pragmático dirá, por exemplo, que a vida humana só começa a partir do décimo dia da fecundação, quando, aparentemente, formam-se os centros nervosos do feto. Mas o idealista tem o direito de pôr em dúvida essa argumentação. Ele dirá: ¿Por que só no décimo dia, e não no quinto, ou no décimo-quinto? Se, a partir da fecundação do óvulo, tem início o processo maravilhoso de que vai resultar um ser humano, processo imbuído de um senso de finalidade que já não tem nada a ver com o acaso, como é que vamos nós, cientistas ou leigos, estabelecer a marca fatal e dizer: é aqui que começa a vida humana, ou mais adiante?¿

A verdade é que, no caso, não é esse tipo de argumentação que interessa aos cientistas. Eles estão fascinados com as possibilidades práticas da história. Foi o que explicou com candura a pesquisadora Lygia Pereira, da USP, quando disse: ¿A questão não é se o blastocisto (o embrião de cinco dias) é vida ou não, mas se a sociedade vai tolerar que se interfira nesse blastocisto.¿

Impossível ser mais claro: a sociedade decide, tendo em vista os resultados concretos da manipulação científica. Mas, ao proceder assim, atravessamos uma fronteira que, para além de ser religiosa, também é ética e filosófica.

Cientistas adoram uma experiência ¿ digamos que seja a sua deformação profissional. Justamente por isso, o direito de interferir ou não com a vida humana não pode ser um espaço entregue ao pensamento científico. E muito menos ao jogo das emoções sociais.

Na Grécia antiga, crianças que nasciam com alguma deficiência eram simplesmente atiradas do alto da Rocha Tarpéia. Era altamente pragmático ¿ e parecia bastante lógico para a moral da época. Em outros casos, a emoção coletiva foi mobilizada para causas que já não eram exatamente lógicas ¿ como a eliminação dos judeus na Alemanha nazista. A sociedade, de um modo geral, também achou que isso era razoável.

O que a História, assim, ensina com lógica férrea é que a defesa da dignidade humana não pode ficar ao sabor de percepções variáveis. Precisamos de alguns ¿absolutos¿ como o que está inscrito na Constituição, que postula a inviolabilidade da vida humana. É esse princípio, no meu entendimento, que o procurador-geral está querendo defender.

LUIZ PAULO HORTA é jornalista.