Título: A nova morte de Vlado
Autor: Zuenir Ventura
Fonte: O Globo, 20/10/2004, Opinião, p. 7

Ainda bem que o Exército divulgou outra nota desautorizando a primeira, onde classificava de revanchismo o que era informação e tentava manter uma desmoralizada farsa que foi montada há quase 30 anos ¿ a de que Vladimir Herzog não fora morto, mas se suicidara no DOI-Codi de São Paulo, a sinistra usina de tortura da ditadura militar. A versão oficial era ilustrada com uma foto dele pendurado pelo pescoço, mostrando que se enforcara com o cinto do macacão com que estava vestido. Em 1978, a Justiça já havia rejeitado a mentira, condenando a União. Mas fez isso baseada em indícios; faltavam as provas visuais.

De repente, surge o desmentido fotográfico vindo do próprio ¿porão do regime¿, como os torturadores chamavam o lugar. Um ex-cabo que participava do esquema retirou as fotos dos arquivos do Comando Militar do Planalto e encaminhou-as à Comissão dos Direitos Humanos da Câmara, de onde foram parar no ¿Correio Braziliense¿, que as publicou domingo (O GLOBO as republicou na segunda). Nelas, Herzog aparece completamente nu, aviltado, tentando esconder o rosto. Sem macacão, sem cinto, sem nada, coberto apenas de humilhação e vergonha.

De novo o passado bate à porta para atormentar a memória de nossas Forças Armadas e, como sombra insepulta, cobrar satisfação e esclarecimento. É o famoso eterno retorno do que foi reprimido ou mal resolvido. Não adianta. Como ensina a psicanálise, o que foi recalcado acaba voltando com mais força. Só há um remédio: admitir o erro e expiar a culpa. Justamente o que o Exército não fez na primeira nota, mas acabou corrigindo na segunda.

Ao afirmar que o assunto não fora abordado de forma ¿apropriada¿ e lamentando a morte de Vladimir, a versão final do Exército faz supor que o assunto internamente ainda divide opiniões, mas em compensação não permite que essas divergências se transformem em manifestações políticas da caserna.

Prevaleceu assim o bom senso, até porque não há como negar fatos como os contidos no relatório publicado pelo mesmo ¿Correio¿, revelando que um pouco antes da morte de Vlado 47 militantes políticos haviam morrido no DOI-Codi paulista.

Clarice Herzog nunca teve dúvida ¿ por intuição ou por saber o que acontecia. No dia em que lhe comunicaram que o marido se suicidara, ela ligou para um amigo dizendo aos prantos: ¿Mataram o Vlado, mataram o Vlado¿. Agora, ao fazer o reconhecimento das fotos, ela reviveu de novo o martírio do pai de seus dois filhos: ¿É horrível vê-lo assim, sofrendo tanto constrangimento¿. Foi como se Vladimir tivesse sido morto de novo.