Título: O SENADO PRECISA INTERVIR
Autor: Francisco Alberto Teixeira
Fonte: O Globo, 09/06/2005, Opinião, p. 7

Se um marciano visitasse Brasília na semana passada, certamente ficaria desorientado. Ao se aproximar da Câmara dos Deputados veria, com gosto, do lado de fora, muitos cartazes e faixas pedindo o fim da pirataria com dizeres expressivos como "pirataria é crime" ou "pirataria é desemprego". Se, entretanto, empolgado, ele entrasse na sala da Comissão de Constituição e Justiça, levaria um susto muito grande e se decepcionaria. Lá, justamente na Comissão que tem o dever específico de defender as leis e a Constituição do país, ao som de ruidosos manifestantes e com a complacência dos melhores juristas que integram as bancadas ali representadas, praticava-se um verdadeiro atentado contra as leis e os tratados vigentes no Brasil, e, o que é pior, a pretexto de defender aqueles que padecem do chamado mal do século, a Aids.

Naquele momento, como vimos nos jornais do dia seguinte, através de uma "votação simbólica", incluía-se na restrita lista do que não pode ser objeto de uma patente os medicamentos usados na prevenção e no tratamento da Aids, bem como seus respectivos processos de obtenção. Por mais absurdo que pareça, equipararam remédios salvadores de vidas com "o que for contrário à saúde pública (!)", definição do que não pode ser patenteado, de acordo com o artigo 18 da Lei de Propriedade Industrial, em vigor há mais de 9 anos.

Há mais de dez anos, com a criação da Organização Mundial do Comércio (OMC), consagrou-se de vez o princípio básico das relações econômicas que reconhece que a propriedade intelectual é um valor determinante e decisivo na regulação das transações comerciais internacionais.

Daí o Tratado de Marrakesh, que criou a OMC, ter incluído em seu conjunto de acordos internacionais, um, o chamado TRIPs, que regula especificamente os aspectos comerciais da chamada propriedade intelectual. E, todos as nações que integram a OMC, hoje nada menos que 148 países, obrigam-se a respeitar todas estas regras, sejam elas relativas a direitos autorais, marcas, indicações geográficas, segredos de negócio, design e, obviamente, patentes. Ainda há certas regras de tolerância para uma lista muito limitada de países subdesenvolvidos, dos quais o Brasil felizmente não faz parte, tendo já expirado, no início deste ano, todos os prazos de transição que estavam disponíveis para os países em desenvolvimento.

Portanto, hoje, todos os demais países estão obrigados a seguir estas regras, sem a menor possibilidade de criar exceções. Há um órgão dedicado à solução de disputas, não só de temas relacionados à propriedade intelectual, mas de quaisquer outros de natureza comercial, como questões de subsídios disfarçados, concorrência desleal e muitas outras.

O Brasil, diga-se de passagem, já se utilizou, com sucesso, destes mecanismos para proteger os seus exportadores e defendê-los de práticas protecionistas feitas por seus parceiros comerciais.

Mas, voltando ao nosso marciano, ele deve ter ficado muito impressionado com as declarações precipitadas manifestadas no fragor da "vitória", principalmente por aqueles que viam naquela aprovação a certeza de que, finalmente, poderiam ser produzidos genéricos a preços muito menores que os praticados pelos detentores de patentes. Até um marciano sabe que leis nunca retroagem sobre direitos adquiridos. Conforta-nos saber que a experiência dos senadores está aí mesmo, na sua missão de revisar os arroubos eventuais excessivamente juvenis dos deputados de primeira legislatura.

Como Marte ainda não faz parte da OMC, nosso marciano certamente ficaria preocupado com o destino daqueles que gostariam de burlar, com uma penada "simbólica", os direitos legítimos de propriedade daqueles que tanto investiram em produtos salvadores. Como as regras do TRIPs têm de ser seguidas por todos os membros, o nosso Brasil, se não for salvo por intervenção do Senado e, posteriormente, pelo Plenário da Câmara, e não pelos membros de apenas uma Comissão, por mais importante que seja, pode vir a ser excluído da própria OMC. Aí só nos restaria a possibilidade de exportar genéricos para Marte...

Mas, agora é sério, onde ficam os nossos soropositivos com estas mudanças? Teriam eles à sua disposição produtos com alto grau de confiabilidade e qualidade, como hoje? Teriam eles acesso imediato aos produtos de ponta, como hoje? Será melhor ficar na dependência de produtores de genéricos de medicamentos recém-introduzidos no mercado mundial?

Sinceramente, não vejo nenhuma vantagem econômica que possa compensar os riscos para a saúde pública.

Vamos torcer para que o bom senso prevaleça e que os atores desta ópera bufa se entendam e possam beneficiar os que realmente precisam, com o suprimento dos melhores produtos de referência, patenteados ou não, sabendo utilizar, com sabedoria e equilíbrio, os mecanismos de equalização de interesses que a própria lei brasileira de propriedade industrial dispõe.

Câmara alterou regra de patentes, mas as leis nunca retroagem sobre direitos adquiridos

FRANCISCO ALBERTO TEIXEIRA é economista e consultor de empresas.