Título: Há 29 anos, perfil diferente
Autor: Cristiane Jungblut e Isabel Braga
Fonte: O Globo, 21/10/2004, O país, p. 3

A importância histórica de o Exército ter lamentado anteontem a morte do jornalista Vladimir Herog no cárcere do DOI-Codi de São Paulo é reforçada pelo fato de que, há 29 anos, todos os documentos existentes colaboram para construir um perfil de suicida e justificar a morte de Herzog. Hoje, os esses relatórios, laudos e despachos fazem parte do processo que tramitou na Comissão de Mortos e Desaparecidos Políticos, do Ministério da Justiça, e serviu para conceder aos parentes do jornalista indenização por ter sido morto sob a guarda dos militares.

Num dos documentos, o Exército afirma que Herzog tinha problemas psíquicos e um trauma de infância por ser judeu. Em outro despacho, o Comando do Exército em São Paulo, onde funcionou o Destacamento de Operações de Informações (DOI-Codi), atribuiu o suposto suicídio do jornalista a um gesto tresloucado. ¿Tudo leva a crer que foi levado (Herzog) ao tresloucado gesto por ter se conscientizado de sua situação e estar arrependido da sua militância", afirma o despacho, assinado pelo tenente-coronel Audir Santos Maciel, comandante do DOI-Codi.

Em seu relato, o militar diz que Herzog pediu para fazer uma declaração de próprio punho e que, como a sala estava sendo usada para outro interrogatório, o jornalista foi levado para o xadrez especial número 1, onde morreu. Maciel disse que Herzog seria libertado. "Pouco depois, ao ir o carcereiro buscá-lo para ser liberado, conforme determinação do chefe da 2 Seção do II Exército, encontrou-o enforcado nas grades", diz o texto.

Na comissão, o jornalista teve sua morte reconhecida pelo Estado, em 1996, e a família recebeu indenização de R$ 100 mil.

Outro documento anexado ao processo é um telex enviado pelo adido militar do governo brasileiro em Londres, onde Herzog trabalhou na BBC antes de voltar ao Brasil. O texto afirma: "Características apuradas junto a um companheiro de trabalho. Pessoa introvertida, nervosa, medroso, positivamente elemento de esquerda marxista, com problemas psíquicos possivelmente causado trauma infância por ser judeu e perseguição nazista", afirma a mensagem. Herzog era iugoslavo naturalizado brasileiro e de família judia, que foi perseguida pelo nazismo na Europa.

Em quase todos os documentos, o Exército afirma que Herzog sofria de problemas psíquicos. No Inquérito Policial Militar (IPM), que ficou a cargo do general Fernando Guimarães de Cerqueira Lima, também aparece essa referência. "Foi apurado que há quatro anos Vladimir Herzog vinha fazendo tratamento psicoterápico. Os responsáveis pelo DOI tomaram precauções necessárias para preservar a segurança das pessoas detidas. Não foi apurado nenhum indício de que a morte de Vladimir Herzog não tenha ocorrido senão por voluntário suicídio".

Em outro trecho, o general escreveu no IPM que Herzog, quando se apresentou ao Comando do Exército, às 8h de 25 de outubro de 1975, foi informado de que seria liberado nesse mesmo dia. Na nota oficial divulgada pelo Comando do II Exército, os militares afirmaram que "as atitudes do sr. Vladimir Herzog, desde sua chegada ao órgão do II Exército, não faziam supor o gesto extremo por ele tomado".

Em seu atestado de óbito, aparece como causa da morte "asfixia mecânica por enforcamento". O perito criminal Motoho Chiota, responsável pelo exame do corpo de Herzog, concluiu pelo suicídio. "Do que ficou exposto depreende-se que o fato possuía um quadro típico de suicídio por enforcamento".