Título: Destravar o Congresso
Autor: JOSÉ ROBERTO ARRUDA
Fonte: O Globo, 21/10/2004, Opinão, p. 7

Durante a ditadura militar, o Congresso Nacional foi fechado algumas vezes, pela força de atos institucionais. Mas isso aconteceu poucas vezes. Em geral, o regime de exceção tinha outros instrumentos para usurpar as funções do Legislativo ¿ e um deles era o decreto-lei, que o presidente da República assinava, a seu bel-prazer, e entrava imediatamente em vigor, sem precisar passar pela peneira da discussão democrática com os segmentos sociais diretamente interessados.

O decreto-lei era, então, enviado ao Congresso Nacional que, em tese, poderia modificá-lo ou torná-lo sem efeito. Mas só em tese. Primeiro, porque produzia efeito a partir da sua publicação. E segundo, porque tinha a proteção do decurso de prazo: se o Congresso não o avalizasse em prazo predeterminado, ele estava automaticamente aprovado.

Bastava então que a maioria ¿ se todo governo tem maioria, por definição, imagine as ditaduras ¿ não discutisse nem votasse o que considerasse impopular.

Passamos pelas diretas já, Constituição de 88, eleições diretas, impeachment, CPIs ¿ e chegamos ao século XXI com o sistema democrático enraizado na consciência crítica das pessoas e consolidado na sociedade. Só que com imperfeições, algumas delas graves que precisam ser corrigidas para consolidação do sistema democrático.

Uma dessas correções é a mudança das medidas provisórias, sucessoras do decreto-lei. A medida provisória, tal como o decreto-lei, dá ao presidente o poder de assinar um texto, publicá-lo no Diário Oficial e fazer com que ele produza efeito imediato.

Agora, diferentemente do decreto-lei da ditadura, não há o decurso de prazo, mas o Congresso é obrigado a votar a MP em 60 dias, prorrogáveis por igual prazo. Se não o fizer em 45 dias, a pauta fica trancada e deputados e senadores não podem votar mais nada. Ou seja, ou o Congresso vota o que a autoridade presidencial absoluta deseja, ou está proibido por imposição constitucional de examinar qualquer outra matéria.

Penso já existir no Congresso e na consciência coletiva a certeza de que esse não é um instrumento democrático. Precisa, portanto, ser modificado.

Por outro lado, é necessário preservar a possibilidade de o Executivo editar medida provisória, em casos de urgência e real relevância ¿ como ocorreu em janeiro de 1999, com a crise econômica internacional e a crise da mudança cambial brasileira, ou como poderia ocorrer em caso de grave acidente climático, por exemplo.

Lamentavelmente, o Executivo vem adotando a prática de editar medidas provisórias sobre quaisquer assuntos. Com isso, vem usurpando os poderes do Congresso Nacional, a quem, de acordo com a Constituição, compete elaborar e votar as leis. Isso acontece sobretudo por força das pressões da estrutura burocrática do Executivo, que prefere a facilidade de legislar por conta própria do que ter que negociar suas teses com a sociedade brasileira, representada pelo Congresso Nacional. Hoje, por exemplo, 20 medidas provisórias estão trancando a pauta do Congresso Nacional.

O presidente Lula, antes crítico do uso indiscriminado das MPs, tratou de quebrar o recorde do seu antecessor. Editou 58 medidas provisórias no primeiro ano, com média de 4,8 por mês. No segundo governo FHC, a média foi de 3,12 ao mês; e, no primeiro governo, de 3,33 MPs por mês.

O governo Lula está, portanto, baixando quase 50% a mais de medidas provisórias que o anterior. Com tantas MPs, o Congresso está permanentemente com pauta trancada, literalmente proibido de discutir e votar qualquer outra matéria.

Há um caminho para solução, por emenda à Constituição, para restringir a edição de medidas provisórias e resgatar as prerrogativas e competências do Congresso Nacional.

A proposta é simples e sua importância reside em três tópicos:

? Toda medida provisória editada pelo Executivo deve ser examinada por comissão mista de deputados e senadores, que decide se ela é urgente e relevante;

? A medida provisória somente entra em vigor após a aprovação desses dois pressupostos pela comissão;

? Os prazos para votação e trancamento de pauta começam a ser contados só depois da manifestação favorável da comissão.

Assim preserva-se no nosso híbrido presidencialismo um instrumento legal para casos excepcionais, mas evita-se seu uso indiscriminado que avilta o Congresso, macula a democracia e paralisa o trabalho parlamentar.

Aprovada a PEC, recupera-se o indispensável equilíbrio de poderes entre o Executivo e o Legislativo, e as duas Casas do Congresso Nacional resgatam sua liberdade de elaborar e fazer cumprir a pauta de seus trabalhos. JOSÉ ROBERTO ARRUDA é deputado federal (PFL-DF).