Título: CONDENADO PELO TRÁFICO
Autor: Natanael Damasceno
Fonte: O Globo, 11/06/2005, Rio, p. 12
Garçom, confundido com policial, é jogado do alto do Pavão-Pavãozinho
O garçom Maiquel Roberto Hunger, de 30 anos, seria hoje mais um número na estatística de pessoas julgadas e assassinadas pelo poder do tráfico de drogas se a sorte, ou o esgoto que desce por um dos costões do Pavão-Pavãozinho, não estivesse no seu caminho. Condenado à morte por um grupo de traficantes na noite da última terça-feira, foi empurrado de cima de uma laje sobre o barranco que fica atrás da Rua Djalma Ulrich. Só não morreu porque a queda foi desviada pela canaleta construída para escoar os dejetos provenientes da favela.
Depois de 12 horas dependurado, calado para não chamar a atenção dos bandidos, Maiquel foi resgatado na manhã de quarta-feira pelo Corpo de Bombeiros. Com o tornozelo quebrado e várias escoriações pelo corpo, foi levado para o Hospital Miguel Couto. Só conseguiu voltar à favela ontem de manhã, com 60 homens do Grupamento de Policiamento em Áreas Especiais (Gpae), que teve de montar uma operação para recuperar os pertences dele.
Desempregado, pai de quatro filhos, Maiquel diz que veio do Rio Grande do Sul para procurar emprego na cidade. Segundo ele, o preço do aluguel foi determinante para que, com a ajuda de dois amigos, fosse parar num barraco na favela.
- Já os tinha visto na favela mas nunca pensei que pudesse ter qualquer problema com eles. Não uso drogas. Só estava aqui em busca de emprego - disse o rapaz ontem, já na delegacia.
Em depoimento, ele contou à polícia que estava na laje de um dos barracos, no topo da favela, falando ao celular, quando foi abordado, por volta das 20h30m, por cinco traficantes armados. Disse também que em poucos minutos os bandidos o acusaram, julgaram e decidiram pela sua morte.
- Estava falando com meu irmão que mora no Sul que finalmente tinha conseguido um emprego quando eles chegaram me acusando de ser informante da polícia ou integrante de outro bando. Neguei, é claro. Mas eles me viraram de costas e disseram que iriam atirar em mim e jogar meu corpo do alto do morro. Antes de eles me empurrarem, ainda ouvi um deles dizendo que não ia gastar balas comigo, já que a queda me mataria. Não sei como sobrevivi - disse Maiquel.
O caso, registrado na 13ª DP (Posto Seis) na quinta-feira à noite, também impressionou o delegado Ivo Raposo.
- Ele não morreu por um milagre. Além da queda, ele passou a noite toda no esgoto, acuado, com medo de que os traficantes o encontrassem. Agora, não tem outra alternativa a não ser sair da cidade - disse o delegado.
Vítima reconhece dois de seus algozes
Ontem de manhã, uma operação foi montada pelas polícias Civil e Militar, para que ele pudesse retornar à favela e recuperar seus pertences. Segundo o tenente-coronel Eraldo Rodrigues, subcomandante do Comando de Policiamento em Áreas Especiais, três pessoas foram detidas durante a ação e conduzidas à delegacia. Duas delas - um menor de idade e Antônio dos Santos Nunes, de 20 anos - foram reconhecidos pelo rapaz como os bandidos que o empurraram. Antônio, que foi preso com pequena quantidade de cocaína, também foi identificado como um dos seguranças da "boca-de-fumo". Segundo o delegado Ivo Raposo, os dois responderão por tentativa de homicídio. O terceiro homem detido foi liberado depois de prestar depoimento.
Pensando estar a sós com a vítima, um dos homens presos chegou a dizer com deboche que, depois que o empurraram, os bandidos gastaram com cerveja o dinheiro que roubaram dele.
Com medo, vizinhos e moradores do prédio que fica na frente da encosta não quiseram falar sobre o ocorrido. Alguns comentaram apenas que o rapaz poderia realmente estar envolvido com o tráfico. Maiquel , no entanto, nega. Diz que nunca teve qualquer tipo de envolvimento com os bandidos. Com medo do bando, ele não informou para onde irá. Disse apenas que não deixará de comparecer ao tribunal para testemunhar contra os bandidos.
UMA FAVELA QUE ASSUSTA A ZONA SUL
Protestos, tiroteios e outros incidentes protagonizados por traficantes e moradores do Morro do Pavão-Pavãozinho costumam aterrorizar a Zona Sul do Rio. Foi o que aconteceu a 3 de setembro passado, quando uma guerra de quadrilhas levou a PM a intervir, gerando um confronto ainda maior, com cerca de três horas de duração. Tiros de balas traçantes iluminaram o céu. A explosão de granadas assustou os moradores dos bairros. O confronto entre policiais e traficantes começou por volta das 4h e só terminou às 7h. Pela manhã, os sinais da guerra estavam em paredes de prédios e em árvores atingidas por tiros.
A 14 de maio de 2000, moradores dos morros do Pavão-Pavãozinho e do Cantagalo desceram às ruas de Copacabana, interromperam o trânsito, apedrejaram carros e levaram comerciantes a fecharem as lojas mais cedo, durante um violento protesto que durou cerca de três horas. A manifestação foi realizada depois que PMs, em incursões nessas favelas, mataram cinco pessoas acusadas de terem ligações com o tráfico.
Em janeiro de 2003, uma cabeça humana foi deixada numa cesta de lixo de um banheiro do shopping Rio Sul. O crime foi atribuído ao traficante Jurandir Dias do Nascimento, o Caju, chefe do tráfico dos morros Pavão-Pavãozinho e Cantagalo, que morreu três meses depois num confronto com policiais. Caju também foi o responsável por espalhar os pedaços ensacados do corpo de um jovem viciado que lhe devia dinheiro pelas ruas de Copacabana em abril de 2002.
A PM e o Corpo de Bombeiros fizeram em agosto de 2001 busca numa encosta do Pavão-Pavãozinho que termina nos fundos de um prédio da Rua Djalma Ulrich para encontrar um homem, de 47 anos, que estava desaparecido há quase dois anos. A mãe dele havia recebido a denúncia que seu corpo havia sido jogado por traficantes do alto da favela. Na vistoria, os bombeiros localizaram uma ossada, mas não era a do procurado. O homem foi visto pela última vez sendo levado da praia para o Pavão-Pavãozinho por dois homens não identificados. A mãe soube depois, por conhecidos, que ele fez dívidas de jogo e estava tentando pagá-las servindo de "avião" (levando drogas do morro para o asfalto).
O inferno carioca em 'Orfeu'
A rotina de violência nas favelas se misturou à história de Orfeu e Eurídice no cinema. Em "Orfeu", de 1999, o diretor Cacá Diegues adaptou o mito grego à realidade carioca: o personagem principal (interpretado por Toni Garrido, vocalista do grupo Cidade Negra) não desce ao inferno, como no relato original, em busca do corpo de Eurídice (Patrícia França), mas sim a um barranco, no fictício Morro da Carioca. Lá, encontra dezenas de cadáveres de vítimas dos traficantes comandados pelo personagem interpretado por Murilo Benício. Assim, o filme faz referência aos cemitérios clandestinos do tráfico, já encontrados, por exemplo, nos morros do Pavão-Pavãozinho, em Copacabana, e dos Macacos, em Vila Isabel, na Favela de Acari e nas Paineiras. Para gravar a cena, foi escolhido um parque no Grajaú.
Legenda da foto: AS BUSCAS ao corpo de uma vítima dos traficantes no Pavão