Título: As 'fabriquinhas' de dinheiro
Autor: Regina Alvarez
Fonte: O Globo, 12/06/2005, O País, p. 3

Postos-chave no governo são usados para gerar recursos e sustentar partidos e campanhas

A origem da crise política que avassala o governo e o Congresso está numa disputa entre PMDB, PT e PTB, ocorrida ainda em 2004 nos Correios, quando o contrato milionário para a implantação dos serviços do Banco Postal foi ampliado e seu prazo de vigência prorrogado até 2011. O contrato, que está sendo investigado pelo Ministério Público, provocou ciúmes entre os representantes dos três partidos, alguns se sentiram preteridos nas negociações e o pacto de boa convivência foi rompido. Segundo um interlocutor com livre trânsito no governo e no PT, situações em que negócios com o governo se misturam com os interesses dos partidos não se restringem à estatal e estão fugindo do controle. Nos bastidores do PT, a entrega de postos-chave em órgãos da administração direta e em algumas estatais capazes de gerar recursos para sustentar partidos e campanhas eleitorais é conhecida como "fabriquinhas".

Pelo menos em outros dois órgãos públicos existem fortes indícios de que "fabriquinhas" foram montadas e acabaram degringolando: no Ministério da Saúde e no Instituto de Resseguros do Brasil (IRB). De acordo com este interlocutor, esse critério de distribuição de cargos também foi adotado em governos anteriores e é encarado com naturalidade, pois o objetivo maior seria manter um amplo apoio dos partidos no Congresso e a governabilidade.

CPI dos Correios vai investigar esquema

A Comissão Parlamentar de Inquérito (CPI) instalada na quinta-feira da semana passada no Congresso não vê tanta legitimidade assim neste processo e vai investigar o funcionamento das "fabriquinhas".

- Essas fontes que alimentam o fisiologismo financeiro dos políticos brasileiros têm que ser secadas. E este é o momento de enfrentar o problema ou continuaremos com esse câncer na política - afirma o deputado Eduardo Paes (PSDB-RJ), um dos integrantes da CPI dos Correios.

No caso dos Correios, a avaliação de integrantes do próprio PT é que a "fabriquinha" vinha sendo mal administrada desde o início do atual governo, quando a diretoria da estatal foi loteada entre três partidos da base aliada. O estopim foi quando o então presidente dos Correios, João Henrique de Almeida Souza, indicado pelo PMDB, negociou um aditivo para o contrato do Banco Postal sem a participação dos demais diretores ligados ao PTB e ao PT.

Esse aditivo, no valor de R$63 milhões, foi assinado em 20 de setembro de 2004, depois que o Banco Central autorizou a expansão dos serviços de correspondentes bancários para os detentores de franquias dos Correios. O contrato original previa a instalação dos correspondentes apenas das agências dos Correios e o prazo máximo de vigência iria até 2009. O aditivo empurrou o prazo para 2011, cinco anos após o último terminal ser instalado.

"Vamos desmontar a linha de produção"

Segundo a estatal, o contrato original já previa a ampliação dos serviços, que só foi possível depois do sinal verde do BC. E a prorrogação seguiu "a mesma lógica do contrato inicial". Ainda assim, a ampliação dos serviços e do prazo de um contrato cujo valor original era R$200 milhões despertou grande interesse nos partidos que dividiam o comando da estatal.

Como explica um conhecedor do sistema de "fabriquinhas", mesmo seguindo o manual e cumprindo todas as exigências da legislação, qualquer empresa que negocie com o governo um grande contrato pode ter a sua vida muito dificultada quando os negócios se misturam com a política. Os políticos criariam as dificuldades e "venderiam" as facilidades em troca de contribuições "espontâneas".

O deputado Eduardo Paes disse que todos os atores envolvidos nos contratos do Banco Postal serão chamados e ouvidos pela CPI, que deve começar a funcionar, de fato, na próxima terça-feira:

- Precisamos desmontar essa linha de produção. Doa a quem doer. O meu partido vai mergulhar fundo nas investigações e, se forem encontradas irregularidades do governo anterior, também serão punidas.

A crise política que resultou na CPI dos Correios começou com a divulgação de uma fita onde o funcionário responsável pelas compras nos Correios, Maurício Marinho, foi flagrado recebendo R$3 mil de propina. Na gravação, Marinho dizia que agia em nome do deputado Roberto Jefferson (PTB-RJ).

As denúncias de corrupção no governo se alastraram para o IRB, outra estatal loteada entre os partidos aliados que está sob investigação. Nesse caso, a "fabriquinha" funcionaria através da cobrança de "pedágio" das corretoras contratadas para operarem em nome do Instituto. O Ministério da Fazenda foi informado sobre o esquema há pelo menos um ano, tentou melhorar os controles ampliando o número de corretoras, mas o "pedágio"continuou. As novas corretoras foram chamadas a contribuir com os partidos, mas algumas se mostraram reticentes em contribuir. O que acarretou problemas no funcionamento da "fabriquinha".

No Ministério da Saúde, a avaliação de uma fonte do próprio PT sobre o funcionamento da "fabriquinha" chega a ser curiosa. Ela foi herdada de governos passados, como constatou a Operação Vampiro, em maio de 2004. Mas teria ficado sem comando nos primeiros meses do governo Lula. Passou então a funcionar no piloto automático até que Luiz Cláudio Gomes da Silva, então assessor de confiança do ministro Humberto Costa, assumiu a Coordenadoria Geral de Recursos Logísticos, responsável pelas compras no ministério, e teria aderido ao esquema de compras superfaturadas. Depois da ação da Polícia Federal, essa "fabriquinha" teria sido fechada.

Engrenagem movida por cargos e dinheiro

BRASÍLIA. Em nome da governabilidade, o PT teria aceitado a herança das "fabriquinhas" com o argumento de que elas serviriam de sustentação financeira aos partidos da base aliada. São classificados como tal esquemas montados pelos partidos em órgãos da administração direta e em estatais que movimentam grande volume de recursos, trabalham com grandes contratos ou realizam grandes compras. Justamente por isso, pelo potencial que têm para gerar recursos para suas legendas, o comando desses órgãos é disputado entre os políticos que dão sustentação ao governo.

Alguns especialistas consideram que a Lei 8.666, que trata das licitações no setor público, é bastante rígida. Mas reconhecem que mesmo quando a licitação e o contrato são feitos rigorosamente dentro do que manda a legislação, o gestor público pode dificultar ou facilitar um negócio, se o interesse for político.

Dentro deste provável esquema, as empresas que têm negócios com o governo já estariam informadas que em muitos casos precisam pagar "pedágio" para fechar contratos e, por isso mesmo, já contabilizariam essa despesa no seu custo total. A abordagem dos políticos seria sutil em muitos casos, mas sempre facilitada pelas disputas comerciais entre os concorrentes.

Na visão de especialistas no esquema de financiamentos dos partidos com recursos públicos, houve nos Correios uma combinação perversa: o choque de interesses partidários e de interesses comerciais. E provavelmente por causa disso tornou-se o pivô da maior crise do governo Lula. A estatal é uma das que movimentam grandes volumes de recursos e têm contratos milionários. Portanto, enquadra-se perfeitamente no conceito de "fabriquinha".

A conclusão de que teria que lotear cargos para construir uma base eficiente levou o PT a aceitar esse jogo logo na montagem do governo, segundo um interlocutor com trânsito junto à direção do partido.

O erro, segundo o mesmo interlocutor, seria não ter mapeado com mais precisão, na montagem do governo, todas as "fabriquinhas", para que o rateio fosse melhor administrado entre os partidos da base e o próprio PT.

O PT teria se concentrado na distribuição dos cargos sem levar em conta esse "potencial arrecadatório" dos órgãos cobiçados há anos pelos partidos políticos. E agora teria perdido o controle sobre quem de fato estaria arrecadando recursos públicos para fins partidários.

Os fundos de pensão das estatais também aparecem na lista de potenciais geradores de recursos para os partidos políticos. No governo anterior, alguns desses fundos foram envolvidos em denúncias de favorecimento e desvio de recursos. As relações perigosas do ex-diretor de Assuntos Internacionais do Banco do Brasil Ricardo Sérgio com a Previ, fundo de pensão do BB, e sua interferência na privatização das teles provocou uma das maiores crises do governo de Fernando Henrique Cardoso.

Legenda da foto: BRIGANDO COM O ALIADO: o deputado Roberto Jefferson, que foi defendido por Lula e depois acusou o PT de corrupção