Título: SECRETÁRIO ESCREVE LIVRO QUE PROPÕE MUDAR LEIS
Autor: Carla Rocha
Fonte: O Globo, 12/06/2005, Rio, p. 22
Idéia é criar três legislações: uma para atos anti-sociais, outra para contravenções e uma mais dura para crimes graves
Oito meses à frente da Secretaria de Segurança do Rio renderam, mais do que noites insones, a idéia de um livro. Delegado federal e doutor em ciências públicas pela Université René Descartes, Marcelo Itagiba, de 49 anos, vai tratar do tema da segurança, tão caro a uma cidade com altos índices de violência, à luz da filosofia e da criminologia em textos que começa a rabiscar.
- Quando há um freio, você pensa duas vezes antes de ir para o crime - diz ele, carioca de Copacabana.
Filho de jurista, ele proporá mudanças no Código Penal, que trataria apenas dos crimes graves, e leis para casos do dia-a-dia (para punir, por exemplo, quem urina na rua) e outras para as contravenções.
O senhor poderia fazer um balanço da sua gestão na Secretaria de Segurança?
MARCELO ITAGIBA: Estou aqui como secretário desde novembro de 2004. E sou da época em que o Rio de Janeiro era uma grande cidade com algumas favelas em seu entorno. Mas estamos nos tornando uma grande favela com uma pequena cidade no meio dela. Hoje quem sofre muito mais do que as pessoas do asfalto são as que moram nas comunidades carentes, subjugadas por uma minoria fortemente armada. Nosso grande desafio não é só dar segurança para as pessoas que estão aqui, mas é levar segurança para as que vivem nessas comunidades. E isso é um fio de navalha, é muito difícil. Nos últimos dois anos, apreendemos 30 mil armas nas mãos de bandidos, armas de uso profissional, que fazem o mal todos os dias.
Como garantir a segurança nessas condições? O senhor está escrevendo livro propondo mudanças no Código Penal?
ITAGIBA: No Brasil, a gente procura resolver tudo com o Código Penal, mas precisamos de outros estágios de repressão social que possam ser usados pela polícia. Na cidade pequena, em que todo mundo se conhece, há um pudor de se praticar o crime e até o pequeno ato anti-social porque a dona Mariazinha vai contar para a dona Chiquinha que vai contar para a sua mãe. Nas grandes cidades, com mais de um milhão de habitantes, as pessoas se tornam anônimas na multidão. O anônimo se julga no direito de fazer qualquer coisa, não tem um freio social. Se você descer aqui na rua (na Central do Brasil) agora, vai ver motoristas de ônibus fazendo xixi no meio da rua. Como é que se controla essa situação? Você vai aplicar a lei penal e dizer que é atentado ao pudor? Se o policial pudesse coibir uma atitude anti-social, talvez o indivíduo não a fizesse mais.
Poderia explicar como funcionariam esses mecanismos de controle?
ITAGIBA: As posturas municipais seriam o primeiro degrau de repressão social. O indivíduo que estivesse fazendo xixi na rua seria levado pelo policial ou pelo guarda municipal até o juiz e receberia na hora de uma sentença irrecorrível em que poderiam ser aplicadas três tipos de pena: serviços comunitários, multa pecuniária ou mesmo uma detenção celular de 72 horas. O juiz também poderia dizer: o senhor fez xixi na rua e agora vai passar uma semana limpando o banheiro da Central do Brasil. Eu tenho certeza de que a pessoa nunca mais faria xixi no meio da rua.
Seriam medidas voltadas apenas para a convivência social ou teriam impacto sobre a incidência de crimes graves?
ITAGIBA: As duas coisas. Quando há um freio, você pensa duas vezes antes de ir para o crime. São questões polêmicas, mas existem estudos em livros de criminologia que mostram, por exemplo, que a criança hiperativa, se não tiver um controle, pode se tornar amanhã um indivíduo anti-social. Mas não quero entrar nessa discussão agora.
E o segundo estágio?
ITAGIBA: Num segundo degrau, nós teríamos algo parecido com a lei de contravenções penais que quase não se usa mais hoje e que não se limita ao jogo de azar, mas a tudo que representa um degrau antes do crime. Nós deveríamos ter uma lei de contravenções penais estadual adequada à realidade do Rio de Janeiro. Essa lei absorveria tipos penais que não precisam estar no Código Penal. Por exemplo, uma batida de carro com lesão corporal leve. Talvez fosse mais eficaz você ser julgado imediatamente por um juiz que poderia aplicar três tipos de pena: serviço comunitário, uma pena de multa mais alta ou uma detenção celular de até uma semana. Fora a reparação civil, que é outro problema. E você ainda teria um terceiro estágio que seria uma lei penal com menos artigos, que representassem atos anti-sociais violentos, com penas mais firmes e progressão de regime mais difícil. Temos que criar estágios de violação da norma. Muitas vezes se exige que a polícia tome medidas para as quais não tem respaldo. É o caso de indivíduos dormindo na Praia de Copacabana, por exemplo. Se houvesse uma lei específica, o policial poderia admoestar a pessoa e dizer para ela se retirar dali. Em caso de resistência, a levaria a um juiz.
A questão dos menores será abordada? Hoje o Estatuto da Criança e do Adolescente dá a eles o direito de permanecer nas ruas...
ITAGIBA: A maior proteção que você pode dar à criança é a obrigatoriedade de ela não ficar na rua. No fundo, o que estou propondo é aquilo que a gente faz no nosso dia-a-dia, na nossa casa, com os nossos filhos. A pessoa precisa saber que há um limite.
O senhor se inspirou no modelo de algum outro país?
ITAGIBA: Eu acho que o americano se aproxima muito disso, quando fala em tolerância zero. Primeiramente, o policial é municipal. O policial de Nova York é da cidade de Nova York. Depois, ele faz cumprir a lei desde a postura municipal até a lei federal. Ele tem como instrumento de trabalho todos os códigos. É por isso que você não vê ninguém bebendo na rua em Nova York. O sujeito está sempre com um saquinho pardo cobrindo a bebida. Você também não pode dormir num banco de jardim. São coisas bobas. Aqui no Rio, quem mora em cima de uma boate, com aquela algazarra que fica na rua, chama o 190 e o policial vai lá. Mas como lidar com a situação? Vai fazer um processo criminal de perturbação da paz? Ou seria melhor arrebanhá-los e levá-los a um juiz que diria a eles que estavam proibidos pela Justiça de freqüentar por um mês esse ambiente?
Mas não sobrecarregaria o Judiciário?
ITAGIBA: Eu acho que desafogaria brutalmente o Judiciário. Nós teríamos também que inovar: os processos teriam que ser orais e imediatos. A exemplo das delegacias, precisaríamos ter magistrados 24 horas nos bairros. Hoje já existem os juizados especiais que poderiam ser utilizados. No Maracanã, há o Jecrim (Juizado Especial Criminal) nos dias de jogos, dentro desse espírito. Pela minha proposta, por exemplo, uma pessoa de porre, aquele brigão ou arruaceiro de boate, teria que curar o porre passando 72 horas numa cela de delegacia. Hoje isso seria uma arbitrariedade. Pode ser que, provisoriamente, a gente fosse encher as cadeias, mas por um curto período de tempo. Acho melhor do que enchê-las de pessoas com grandes condenações.
Como surgiu a idéia de fazer esse livro?
ITAGIBA: Aqui mesmo (na Secretaria de Segurança), porque a gente vai se deparando com a falta de instrumentos legais e com a morosidade do sistema para regular as relações sociais. Eu sou cobrado por tudo. Tudo que acontece no Estado do Rio acaba recaindo nos braços da polícia. E, para tentar segurar esse dique, tenho que ter instrumentos legais. O Código Penal é um instrumento muito forte e muito distante da realidade.
Como deve ser o tratamento da prostituição, que não é crime?
ITAGIBA: A prostituição não é crime, mas a exploração da prostituição é. Eu posso ter uma postura municipal que diga que ficar de minissaia ou de seios de fora em Copacabana, na Zona Sul do Rio, ou onde quer que seja, é algo que viola uma postura municipal e que pode permitir que eu leve a pessoa até um juiz que vai condená-la a prestar um serviço comunitário. Embora não seja crime, a prostituição é algo que gera uma reprovação social. Todos os dias, recebemos ligações de moradores da cidade pedindo que uma determinada situação seja resolvida.
Teria que haver uma mudança constitucional para implementar essas medidas...
ITAGIBA: Seria necessária uma alteração da Constituição em que voltaríamos a respeitar a individualidade federativa de cada estado. Nós não somos uma república federativa? Então, precisamos dar aos estados instrumentos para que possam regular suas vidas.
'Muitas vezes se exige que a polícia tome medidas para as quais não tem respaldo e apela para o arbítrio'
'A lei penal é hoje um instrumento muito forte e muito distante da nossa realidade'
Legenda da foto: MARCELO ITAGIBA: "Temos que criar estágios de violação da norma"