Título: 'MINHA SAÍDA NÃO FOI UMA AÇÃO ESPONTÂNEA'
Autor: Janaina Figueiredo
Fonte: O Globo, 12/06/2005, O Mundo, p. 40

Ex-presidente Carlos Mesa diz ter optado por evitar banho de sangue

BUENOS AIRES. Antes de chegar ao Palácio Quemado (sede do governo boliviano), ele se destacou como jornalista e analista político. Ganhou vários prêmios e escreveu diversos livros, entre os quais "Presidentes da Bolívia: entre urnas e fuzis". Num país que foi cenário de mais de 200 golpes de Estado, o ex-presidente Carlos Mesa diz que tentou, até o último minuto de sua gestão, evitar que a violência tomasse conta do país. Diante da enorme pressão de movimentos sociais, partidos políticos, sindicatos e câmaras empresariais, Mesa, que assumiu a Presidência em outubro de 2003 em meio a uma revolta social que deixou mais de 30 mortos, optou por renunciar e evitar um novo banho de sangue. O ex-presidente evita falar em golpe, mas reconhece que sua saída "não foi produto de uma ação espontânea". Em entrevista exclusiva ao GLOBO, por telefone, Mesa agradeceu o respaldo do governo Lula e assegurou que "a permanência de Rodríguez (o novo presidente) dependerá de o país entender que sua única função será administrar as eleições".

Após enviar sua renúncia ao Congresso, segunda-feira passada, o senhor assegurou que a Bolívia estava à beira da guerra civil. Hoje, com o novo governo de Eduardo Rodríguez, esse risco ainda existe?

CARLOS MESA: Acho que estamos diante de uma possibilidade de normalização do país, mas tudo dependerá do Congresso e de que seja ratificado o processo eleitoral proposto pelo presidente Rodríguez. Se isso acontecer, poderemos ter uma válvula de escape em momentos de tanta tensão. Se o processo for consolidado, a orientação de todas as questões que neste momento estão sendo debatidas pelos bolivianos só serão tratadas por um futuro governo eleito.

Hoje não existe perigo de guerra civil?

MESA: Não, pelo menos não a curto prazo. O que não deixou de existir é a evidência de que existem vários assuntos de enorme importância para o país que não podemos deixar de resolver. Quando um governo de longo prazo assumir o poder deverá encarar estas questões, caso contrário o país voltará a mergulhar numa crise.

Quais são as questões mais importantes para o país?

MESA: A prioridade para a Bolívia hoje é recuperar o estado de direito. O país sofreu muito porque perdeu a relação racional entre poder e sociedade, além do respeito básico às leis nacionais. O preço que tive de pagar para manter a paz, o respeito à vida e a tolerância entre os bolivianos foi a flexibilização dos mecanismos institucionais. Optei por este caminho porque a Bolívia vinha de um processo muito violento e essa opção era necessária.

A convocação de referendos sobre a autonomia dos departamentos (estados) de Santa Cruz, Pando, Beni e Tarija, e a realização de uma Assembléia Constituinte são duas das prioridades que um futuro governo de longo prazo deverá encarar?

MESA: Claro, sem dúvida. Mas para isso devemos construir cenários de consenso, para que ambos os processos ocorram num marco de respeito e de solução. A Assembléia Constituinte deve ser uma resposta destinada a recompor o pacto social no país. Não pode ser um cenário de confronto ainda maior.

Seu antecessor, o ex-presidente Gonzalo Sánchez de Lozada, renunciou em outubro de 2003 em meio a protestos que causaram a morte de mais de 30 pessoas. O senhor, que era vice de Lozada, renunciou pressionado por violentas manifestações. Que chances tem o novo presidente de conseguir governar?

MESA: A permanência de Rodríguez dependerá basicamente de que o país entenda que sua única função será administrar as eleições. Se isso for entendido e informado ao país, ele poderá governar. Por isso é vital que na próxima terça-feira o Congresso aprove uma lei que reduza o mandato constitucional e que estabeleça as futuras eleições. Se isso acontecer, Rodríguez governará até novembro e o país estará concentrado nas campanhas eleitorais.

O senhor poderia ser candidato à Presidência?

MESA: A Constituição não o permite, eu deveria esperar um mandato. Mas acontece que o ex-presidente Jorge Quiroga, que também deveria esperar, tem aspirações presidenciais e poderia conseguir uma modificação que permita sua candidatura e, portanto, também a minha. Mas pessoalmente não acredito ter interesse, neste momento, de encarar uma campanha eleitoral.

O senhor descarta ser candidato, ou vai pensar?

MESA: (silêncio) Neste momento, francamente, descarto essa possibilidade. Mas a senhora sabe que em política nada pode ser descartado. Hoje (sexta-feira passada) estou terminando uma experiência tão dura e tão difícil que deveria ter uma enorme força de vontade para querer retornar ao palácio do governo.

No pior momento de sua gestão, sua popularidade era de 44%. O senhor era o político com melhor imagem do país...

MESA: Durante todo o meu governo minha popularidade esteve em torno de 70%, mas enfrentei um problema que se tornou fatal desencadeado pelo péssimo relacionamento com o Congresso. Não se pode governar tendo uma péssima relação com o Congresso e essa é uma das lições mais amargas que aprendi.

O senhor considera que foi vítima de um golpe?

MESA: Eu diria que minha saída não foi produto de uma ação espontânea.

Estava planejado?

MESA: Ficamos por aí.

Quem esteve por trás dessas ações não espontâneas que o obrigaram a renunciar?

MESA: O poder tem muitas ramificações. Mas eu não gostaria, agora, quando ainda tenho um pé no palácio do governo, de entrar numa polêmica que no momento adequado deverá ser encarada. Hoje o país precisa de unidade e tolerância.

O senhor se sentiu respaldado pelos países vizinhos?

MESA: Sim, a atitude do presidente Lula e de Marco Aurélio Garcia como enviado do governo brasileiro sempre foi extraordinária. Tenho uma grande gratidão ao Brasil e também a outros países, como a Argentina, os EUA, a União Européia. A comunidade internacional se comportou muito bem comigo.

O senhor insiste na necessidade de união entre os bolivianos. É possível essa união com setores como a oligarquia de Santa Cruz e os movimentos indígenas, cada vez mais antagônicos?

MESA: Existem posições radicalizadas e racistas em ambos os setores e esse é um dos grandes problemas da Bolívia, que explica por que o país está onde está. O grande problema é que não nos vemos como iguais. Se o país continuar sendo construído sobre a base de setores que discriminam outros setores, que se sentem cada vez mais excluídos e reagem com violência, a coisa só vai piorar.

Legenda da foto: O EX-PRESIDENTE reza na catedral de La Paz