Título: INOCÊNCIA VIOLENTADA
Autor: Fábio Vasconcellos
Fonte: O Globo, 14/06/2005, Rio, p. 12

Crianças e adolescentes são maioria das vítimas de estupros e atentados ao pudor

A aproximação começou com a promessa de brinquedos. Em pouco tempo, X., de 9 anos, já freqüentava a casa de um vizinho, de 66 anos, em Jacarepaguá, onde assistia a filmes e tinha várias bonecas para se divertir. Um dia, a menina sofreu um forte sangramento e um exame comprovou que ela tinha sido estuprada. O drama da família, registrado na Delegacia Especial de Atendimento à Mulher (Deam), não terminou aí. A polícia descobriu que as outras irmãs de X., de 7 e 8 anos, tinham sido vítimas de atentado violento ao pudor cometido pelo mesmo vizinho.

Um levantamento feito a partir dos registros policiais revelou que 65% dos casos de atentado violento ao pudor (qualquer tipo de abuso sexual), ocorridos entre 2001 e 2003, foram contra crianças que tinham entre 5 e 12 anos, enquanto que o estupro (violência sexual apenas contra a mulher) correspondeu a 16,3% para a mesma faixa etária. Os dados fazem parte de uma pesquisa sobre crimes sexuais realizada pelo Núcleo de Estudos de Sexualidade e Gênero/UFRJ e pelo Centro de Estudos de Segurança e Cidadania/Cândido Mendes. As pesquisadoras analisaram 3.608 registros de estupros e 4.947 de atentados violento ao pudor (73,9% dos casos foram contra vítimas do sexo feminino). Segundo a pesquisa, 31,8% das vítimas de estupro são adolescentes (de 13 a 17 anos) e, ao todo, 50,9% são menores de 18 anos.

Maioria dos crimes é cometida em casa

O estudo mostra que 60% dos atentados ao pudor ocorreram dentro de casa, a maioria no período da tarde, e em 72% das vezes foram cometidos por parentes, vizinhos ou algum conhecido da família. Os casos de estupro têm características diferentes. A maioria das vítimas foi atacada em áreas públicas (62%) à noite ou de madrugada (62,3%) e 48% dos agressores eram conhecidos das vítimas. A pesquisa levantou também as regiões administrativas que tiveram proporcionalmente o maior número de estupros e atentados ao pudor.

A região da Barra encabeça a estatística com 8,5 estupros por dez mil habitantes, seguida de Rio Comprido e Santa Cruz. Os atentados ao pudor ocorreram mais em São Cristóvão, Santa Cruz e Barra. Mas esses dados precisam ser mais bem analisados, segundo as pesquisadoras. De acordo com elas, em regiões que englobam favelas como Jacarezinho, Complexo do Alemão e Maré não foram registrados estupros, o que levou a Barra a encabeçar a lista. As regiões da Rocinha e da Cidade de Deus apresentaram apenas 7 estupros em três anos.

- Temos que levar em conta que nessas regiões de favela há forte pressão de traficantes. Isso pode ter colaborado para que mulheres não registrassem estupros - diz a socióloga Aparecida Fonseca Moraes.

O cruzamento de dados da pesquisa revelou a faixa etária dos criminosos. Em relação ao atentado violento ao pudor, 49% dos agressores tinham entre 25 e 44 anos. Nos casos de estupro, a maior parte dos autores tinha também entre 25 e 44 anos (58%).

Para a socióloga Bárbara Soares, a pesquisa pode ajudar a polícia e as famílias a prevenirem esses crimes, já que mostra com mais detalhes a dinâmica e o perfil de vítimas e autores. Ela chama a atenção para a impunidade dos crimes de violência sexual contra as mulheres. Mesmo nos casos em que os agressores foram identificados, menos de 10% foram presos e indiciados.

- A impunidade é um convite à violência. O número de pessoas presas e indiciadas ainda é muito baixo e, certamente, é um dos fatores que colaboram para que esses crimes continuem ocorrendo - diz Bárbara.

Segundo a Associação Brasileira Multiprofissional de Proteção à Infância e à Adolescência (Abrapia), somente cerca de 10% a 20% dos casos de abuso contra crianças são registrados. O secretário executivo da Abrapia, Lauro Monteiro Filho, diz que a polícia e a Justiça pouco avançaram na punição dos autores de abuso contra crianças. Ele lembra do caso de um menino que foi abusado pelo pai e somente sete anos depois os psicólogos da Abrapia foram chamados para prestar depoimento na polícia, já que tinham dado atendimento à criança.

- Avançamos muito na discussão desses crimes, mas infelizmente ainda é muito baixo o número de pessoas condenadas por praticar abusos contra crianças.

Lauro Monteiro acrescenta que há quase duas décadas era tabu falar de atentado violento ao pudor contra meninas; hoje, segundo ele, o problema é o abuso contra meninos. Para ele, há um grande número de subnotificações de casos envolvendo garotos que sofrem abusos dentro de casa por algum parente ou vizinho. O coordenador do SOS Mulher, o ginecologista Moisés Rechtman, por sua vez, alerta para o grande número de mulheres que não procuram atendimento médico após os estupros. O ginecologista explica que após 72 horas do estupro é possível evitar gravidez indesejada, doenças venéreas e Aids:

- Para isso, as mulheres precisam ir aos centros de referência, como maternidades públicas, e se informarem o mais rapidamente possível após o estupro. Hoje, somente 10% dessas mulheres procuram esses centros.

Delegada ensina a prevenir

OS CRIMES:

A delegada Márcia Noeli, da Delegacia Especial de Atendimento à Mulher, que escreveu o livro "Mulheres corajosas, é uma questão de atitude", dá conselhos sobre como prevenir crimes sexuais ou perceber alterações no comportamento de crianças vítimas de abuso.

ESTUPRO:

Não aceite carona de desconhecidos. Há muitos casos de estupro ocorridos dentro de veículos.

Se achar que está sendo seguida, entre em alguma loja, e telefone para a polícia.

Evite ruas escuras e pouco movimentadas e, se for inevitável passar por elas, procure sempre estar acompanhada.

Quando for a festas, procure sempre ir com grupos de amigos.

Quando chegar em casa, em companhia de alguém, não permaneça dentro do carro.

Se tiver que marcar algum encontro, procure sempre locais públicos e movimentados.

Desconfie de propostas de trabalho tentadoras e em locais em que tem que ficar sozinha com estranhos.

ATENTADO VIOLENTO PUDOR:

Procure observar o comportamento do seu filho. Em geral, crianças vítimas de abuso sexual ficam tristes e retraídas.

Converse sempre com os professores pois eles permanecem muito tempo com as crianças e podem observar alterações no comportamento.

Preste atenção ao rendimento escolar dos crianças. Geralmente crianças vítimas de abuso apresentam queda no rendimento escolar.

Se desconfiar de algo, procure ajuda. Os órgãos que tratam da defesa da mulher e os conselhos tutelares que cuidam das crianças têm psicólogas que poderão auxiliar.

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