Título: CRIMES DA DITADURA SEM PERDÃO
Autor: Janaina Figueiredo
Fonte: O Globo, 15/06/2005, O Mundo, p. 34

Argentina revoga leis de anistia e abre caminho para julgar centenas de militares

Ontem foi um dia histórico para os argentinos. O Supremo Tribunal de Justiça declarou inconstitucionais as leis de Obediência Devida e do Ponto Final, as chamadas leis do perdão, que durante o governo do ex-presidente Raúl Alfonsín (1983-1989) anistiaram centenas de militares e civis envolvidos em crimes da ditadura (1976-1983). Segundo afirmou o ministro da Defesa, José Pampuro, a decisão do Supremo pode provocar uma enxurrada de processos, pois entre 500 e mil militares que estavam protegidos pelas leis do perdão poderiam ser alvo de novas denúncias judiciais.

Eufórico, o presidente Néstor Kirchner assegurou que a decisão do Supremo "devolveu a fé na Justiça aos argentinos".

- Para todos os que sofreram atrozes tormentos durante a ditadura. Os filhos, os familiares, os irmãos hoje (ontem) se reconciliam com a Justiça porque esta decisão é um grito de ar fresco - enfatizou Kirchner, durante um ato na província de Córdoba.

Dos nove juízes do Supremo, sete votaram a favor da anulação da lei, com base no caso de Gertrudis Hlaczik e José Liborio Poblete, seqüestrados em 28 de novembro de 1978, juntamente com a filha, Claudia, que na época tinha 8 meses. O suposto responsável pelo seqüestro é o ex-repressor Julio Héctor Simón, mais conhecido como "Turco Julián", que está preso, acusado de ter roubado filhos de desaparecidos, delito que não prescreveu. Agora, com a decisão do Supremo, Simón poderá ser julgado também pelo seqüestro e assassinato do casal Poblete. Como ele, centenas de outros militares poderão ir ao banco dos réus.

Decisão pode permitir condenação histórica

Um dos casos mais emblemáticos é o do ex-capitão da Marinha Alfredo Astiz, conhecido como Anjo Louro (o ex-militar tinha um rosto belo e predileção por torturar mulheres). Astiz foi condenado à revelia pelos tribunais franceses e sua extradição foi solicitada pela Espanha. Ele está preso num quartel da Marinha na cidade de Zarate, a cem quilômetros de Buenos Aires, a espera de julgamento. A decisão do Supremo, afirmaram analistas, poderia acelerar o processo e permitir uma condenação histórica no país.

- As leis do perdão foram nefastas e nos asfixiaram com tanta impunidade durante muitos anos. Mas nós nunca nos rendemos e finalmente encontramos um governo que atendeu nossa demanda - disse a presidente das Avós da Praça de Maio, Estela Carlotto.

Após terem sido julgados, em 1984 e 1985, pela perseguição de opositores, os militares foram beneficiados pelas leis 23.492 e 23.521, aprovadas pelo Congresso e promulgadas por Alfonsín que, em meio a revoltas militares, temia um novo golpe. Em 1986 foi promulgada a Lei do Ponto Final, que estabelecia um prazo de 60 dias, a partir da data de sua aprovação, para a apresentação de novas denúncias contra militares. Em 1987, após sobreviver a um novo levante militar, Alfonsín deu sinal verde à Lei de Obediência Devida, que anistiou oficiais subalternos. De acordo com a polêmica lei, os militares cumpriam ordens, e por isso não podiam ser julgados.

Ontem, o ex-presidente divulgou uma carta na qual manifestou sua satisfação pela decisão do Supremo, mas defendeu a decisão adotada durante seu governo. "A democracia está definitivamente consolidada na Argentina. Como disse há algum tempo, estou convencido de que no momento em que foram aprovadas, as leis de Ponto Final e Obediência Devida foram válidas e indispensáveis para a proteção dos direitos humanos e para o futuro", afirmou Alfonsín.

Defensor das vítimas da guerra suja

Kirchner tem mostrado disposição para revirar passado

BUENOS AIRES. Em pouco mais de dois anos de governo, o presidente da Argentina, Néstor Kirchner, adotou emblemáticas medidas que beneficiaram vítimas da ditadura e familiares delas, e prejudicaram os militares. Em sua primeira semana de gestão, em maio de 2003, Kirchner renovou a cúpula militar, designando o general Roberto Bendini, homem de sua confiança, para o comando do Exército.

As portas da Casa Rosada foram abertas para organizações de defesa dos direitos humanos, como as Mães da Praça de Maio, que nunca foram tão bem tratadas por um presidente. Talvez por ser de uma geração mutilada pela ditadura, Kirchner estabeleceu um forte vínculo com parentes de desaparecidos. Aprovou uma indenização a exilados políticos e ofereceu toda a colaboração do Estado em processos judiciais contra militares envolvidos em crimes da ditadura. Também deu sinal verde ao projeto de transformar a Escola de Mecânica da Armada (Esma), principal centro clandestino de tortura do governo militar, num museu em memória dos desaparecidos.

No ano passado, em 24 de março, dia em que milhares de argentinos participam de atos em repúdio ao golpe de 1976, Kirchner se tornou o primeiro presidente a pedir desculpas pelo papel do Estado no processo de redemocratização do país.

- Como presidente, venho pedir perdão em nome do Estado nacional por ter se calado durante 20 anos de democracia. Falemos com clareza, não é rancor nem ódio o que nos mobiliza. É justiça e luta contra a impunidade - afirmou, num histórico discurso.

No mesmo dia, o presidente participou de uma cerimônia no Colégio Militar na qual foram retiradas de uma galeria retratos dos generais Jorge Rafael Videla e Reynaldo Bignone, figuras de proa do governo militar e ex-diretores da instituição. Kirchner ainda anulou um decreto que proibia a extradição de militares argentinos para serem julgados no exterior e defendeu, desde o início de seu governo, a anulação das leis do perdão. (J.F.)

CORPO A CORPO

RAÚL ZAFFARONI

'Recuperamos a nossa soberania'

BUENOS AIRES. Na visão do juiz Eugenio Raúl Zaffaroni, primeiro membro do Supremo Tribunal de Justiça designado pelo presidente Néstor Kirchner, a decisão de declarar inconstitucionais as chamadas leis do perdão era uma dívida da Justiça argentina com as vítimas da ditadura e a comunidade internacional. "A partir de agora a Justiça argentina terá competência para julgar os militares de seu país", afirma o juiz argentino, em entrevista exclusiva ao GLOBO.

A decisão estava sendo esperada há vários meses. Por que a votação foi adiada durante tanto tempo?

ZAFFARONI: A votação demorou porque estávamos esperando o relatório do procurador-geral da nação. O relatório chegou às mãos do tribunal em maio passado e isso adiou o processo.

A decisão do Supremo permitirá o avanço de processos na Justiça contra militares envolvidos em crimes da ditadura?

ZAFFARONI: Na prática, serão removidos os obstáculos aos processos penais em andamento. Cada um dos juízes resolverá o que fazer em cada caso. O importante é que estas leis não poderão ser mais invocadas (para proteger militares).

Se as leis estavam sendo usadas para impedir o julgamento de determinados militares, a partir de agora esta proteção desaparece?

ZAFFARONI: Exatamente, a proteção desaparece. Outra coisa que muda é o lugar onde são julgados os militares. Com a decisão do Supremo, o julgamento de militares argentinos no exterior não será mais possível. A partir de agora a Justiça argentina terá competência para julgar os militares de seu país.

O caso de Adolfo Scilingo (condenando recentemente a 640 anos de prisão na Espanha) será uma exceção?

ZAFFARONI: Sim, no futuro outros países não poderão argumentar que os militares devem ser julgados no exterior pois a proteção que existia na Argentina deixou de existir. A competência passa a ser dos tribunais argentinos.

Muitos militares poderão ser julgados graças à decisão do Supremo?

ZAFFARONI: Não sei, é difícil dizer.

Esta era uma dívida da Justiça argentina com as vítimas e familiares das vítimas da ditadura?

ZAFFARONI: Num certo sentido sim, mas essa é uma avaliação política. Acho que era uma dívida da Justiça argentina com a comunidade internacional. A nossa incapacidade para resolver, com nossa Justiça, era praticamente uma confissão da nossa incapacidade como Estado (para julgar os militares). Era uma incapacidade da República de resolver seus próprios problemas, o que abria a possibilidade de julgamento de argentinos, acusados de fatos ocorridos aqui, em qualquer país do exterior. Recuperamos a nossa soberania. (J.F.)

'Os filhos, os familiares, os irmãos hoje (ontem) se reconciliam com a Justiça porque esta decisão é um grito de ar fresco'

NÉSTOR KIRCHNER

Presidente da Argentina

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