Título: Lula sob a luz da História
Autor: Octavio Amorim Neto
Fonte: O Globo, 17/06/2005, Opinião, p. 7
O governo de Lula encontra-se sob uma gravíssima crise. Tudo tem sido muito confuso e atordoante, até para um cientista político. Infelizmente, o que está acontecendo tem assustadores precedentes no nosso passado. Para tentar dar ordem à casa, vamos botar a presidência de Lula em perspectiva histórica, levando em conta a experiência de todos os nossos presidentes democráticos, isto é, aqueles que governaram o país entre 1946 e 1964 e 1985 e 2005.
Comparando-se todas as nossas sucessões presidenciais, constata-se uma perigosa regularidade: governos de coalizão foram quase sempre sucedidos por presidentes que podem ser considerados outsiders (forasteiros, em português), que, por sua vez, não conseguiram terminar seus mandatos, cedendo lugar ao seu vice. Aos fatos.
Nosso primeiro presidente democraticamente eleito, Eurico Dutra, iniciou seu governo em 1946, apoiado por uma coalizão integrada pelo PSD e o PTB. Mais tarde, o PTB foi excluído do governo, dando lugar à UDN e ao PR. Em 1951, Dutra foi sucedido por Getulio Vargas, que - apesar de haver criado o PSD com a mão direita e o PTB com a esquerda - pouco compromisso tinha, de fato, com qualquer partido. Conquanto Vargas tenha nomeado políticos de várias siglas para seu Ministério, nunca logrou estabilizar sua base de apoio parlamentar. Não à toa, sua presidência foi abalada por uma série de crises, culminando com o seu suicídio em agosto de 1954. Café Filho, seu vice, assumiu a chefia do Executivo. Porém, também incapaz de estabelecer um relacionamento harmônico com a maioria do Congresso, acabou deposto a dois meses do fim do mandato, completado por Nereu Ramos.
Em 1955, elege-se Juscelino Kubitschek. Já no governo, o novo presidente constituiu um amplo e sólido ministério de coalizão que o acompanhou até o fim do mandato, em janeiro de 1961. Kubitschek foi sucedido por Jânio Quadros, o outsider por excelência. Sempre desprezando os partidos e o Congresso, Jânio renunciou ao cabo de sete meses. João Goulart, seu vice, só conseguiu assumir a Presidência depois de aprovada a emenda constitucional nº 4, que instituía o parlamentarismo. A presidência de João Goulart, como se sabe, foi um fracasso político, tendo sido abortada pelo golpe militar de março de 1964.
Vinte e um anos depois, restabelece-se o poder civil com a posse de José Sarney, em março de 1985. Sarney governou com uma coalizão integrada pelo PMDB e o PFL. Surpreendentemente, o padrão verificado entre 1946 e 1964 se verifica novamente: Fernando Collor, outro outsider por excelência, logra suceder a Sarney. No governo, Collor se recusa a formar uma maioria parlamentar. É destituído em outubro de 1992. Seu vice, Itamar Franco, ascende à chefia do governo.
A lógica subjacente à sucessão de um governo de coalizão por um outsider é simples: a manutenção de um governo de coalizão, ainda que garanta estabilidade e efetividade políticas ao titular da Presidência, implica complexas e custosas negociações com os partidos aliados. Tais negociações tendem a retardar o processo decisório e gerar a suspeita de serem escusas, irritando os eleitores e, portanto, enfraquecendo a autoridade presidencial. O eleitorado, por sua vez, pune a coalizão governativa alçando ao poder um candidato visceralmente oposto ao sistema de partidos, ou seja, um outsider. Mas voltemos à nossa história.
Em 1994, FHC empalma a Presidência no rastro do Plano Real. Em 1998, é reeleito. Durante quase todos os seus oito anos como chefe de Estado, FHC esteve à frente de uma ampla e sólida coalizão de apoio parlamentar, que propiciou o mais estável governo, do ponto de vista político, dos nossos dois períodos democráticos.
Em 2002, Lula é eleito. O que representou sua vitória à luz do que foi dito acima?
Em primeiro lugar, Lula não é um outsider. Trata-se do líder de um partido, o PT, que, há 25 anos, disputa eleições e que conta com forte apoio nos sindicatos, nas universidades, no funcionalismo público, na Igreja e no MST. Ademais, hoje, o PT é o maior partido na Câmara. Portanto, o fato de FHC ter passado o bastão ao líder de um partido político constitui uma feliz ruptura com o perigoso padrão acima registrado.
Há, contudo, desde a vitória de Severino Cavalcanti para a presidência da Câmara em fevereiro de 2005, um traço de semelhança entre Lula e os presidentes outsiders: todos foram ou tornaram-se minoritários no Congresso. E nenhum presidente minoritário jamais terminou o seu mandato em nossa História. Aqueles que têm falado de golpismo deveriam prestar mais atenção a essa temerosa regularidade, que indica que há algo mais sério e profundo acontecendo em nosso sistema político do que as supostas más intenções de alguns personagens.
Conseguirá Lula chegar a dezembro de 2006 no Palácio do Planalto? Torçamos para que sim. Porém, se é que a História pode nos servir de guia, isto vai depender da disposição e da capacidade do presidente de satisfazer as seguintes condições: (1) mostrar que não soube de nenhum esquema de corrupção dentro do seu governo; e (2) fazer uma ampla reforma no seu Ministério para sinalizar à nação que não é tolerante com condutas ilícitas e recompor sua maioria parlamentar. É muito simples dizê-lo, mas não é fácil fazê-lo. Oremos.
OCTAVIO AMORIM NETO é professor de ciência política na Escola de Pós-Graduação de Economia da Fundação Getulio Vargas no Rio.
Detergente, punição e uma outra República
Muito já foi dito e escrito sobre a contingência que fez com que a Constituição de 1988 tenha sido concebida sob a inspiração de temas e idéias dos anos 70 e 80, às vésperas de transformações que mudaram profunda e radicalmente a História mundial.
Forma e conteúdo de diversos capítulos da Constituição tornaram-se rapidamente defasados com relação às necessidades impostas pela realidade e, em poucos anos, através da votação de emendas constitucionais, nosso texto maior começou a ser reformado.
O sistema político criado em 1988 tem padecido de diversas disfuncionalidades, entre as quais uma das principais é a estruturação de um parlamento que só tem bônus, sem qualquer ônus relativo à missão e à eficácia dos governos que se sucedem. A improvisada mistura entre Presidencialismo e Parlamentarismo gerou uma criança que ao atingir a maturidade revela deformações irreversíveis de caráter.
Acrescente-se que, de 1990 para cá , as novas tecnologias da informação trouxeram detergente e luz do sol suficientes para gerar profundas crises políticas em democracias como as da Itália, da Alemanha, do Japão, da França, e muitas outras. No Brasil, ao se adicionar a esse quadro uma pesada herança patrimonialista que gerou uma eficiente máquina sugadora de benesses estatais, o sentimento é de septicemia crônica com ocasionais erupções de algumas das vísceras podres.
A sociabilidade brasileira não está frente a uma transição revolucionária que legitime a imposição sobre os demais de um poder maior, no caso, o poder constituinte de uma assembléia soberana.
Como exemplo, embora o pacto federativo esteja sendo corroído, sem dúvida cabe ao Congresso Nacional sua reestruturação.
Ou ainda: apesar de a reforma tributária ser uma emergência, é o Congresso Nacional quem deve superar os obstáculos e os conflitos existentes.
Da mesma forma, muitas são as modernizações necessárias no texto constitucional para que a economia brasileira adquira maior produtividade. É do Congresso Nacional a tarefa de encontrar os consensos e as maiorias para as mudanças.
Muito diferente é a realidade do sistema político. Sua paralisia decisória e a amplitude e profundidade do divórcio que se produziu entre a sociedade e o processo político configuram, sim, uma situação de ruptura. Não há mais costura para o esgarçamento ocorrido.
É necessário, no que diz respeito ao sistema político, fundar uma outra República, antes que uma ocasional conjuntura de crise econômica e social se some ao abismo existente entre a sociedade e sua representação, abrindo caminho para os mais perigosos aventureirismos.
O presidente Fernando Henrique Cardoso cometeu o grande erro de, em nome das boas condições de governança, desperdiçar o seu capital político inicial sem fazer a reforma política. O presidente Luiz Inácio Lula da Silva repetiu o erro. O próximo presidente da República seguirá, como numa crônica de uma morte anunciada, na mesma direção.
Nada de reforma política meia-sola, concebida pelas mesmas maiorias que ascenderam ao poder pelos atuais caminhos viciados. Passou o tempo. A representação política perdeu a legitimidade necessária para se auto-reformar. Uma reforma política restrita aos estreitos limites do consenso atualmente possível corre o risco de ser um atalho para o descrédito definitivo da política.
Precisamos eleger uma constituinte específica da reforma política, formada por representantes eleitos exclusivamente para esse fim, a partir de propostas nítidas e claras dos partidos políticos, mas admitida também a participação de candidatos avulsos a membros desse poder provisório, porém maior.
Primeiro, detergente, luz do sol e punição. Depois, uma nova casa, mais arejada, uma outra República.
SÉRGIO BESSERMAN é diretor do Instituto Pereira Passos, do Rio, e foi presidente do IBGE.
No sistema político criado em 1988, o parlamento só tem bônus