Título: Quando erros pesam mais que o sonho do poder
Autor: Tereza Cruvinel
Fonte: O Globo, 17/06/2005, O País, p. 8

No primeiro ano de governo foi quase um primeiro-ministro, mas embates com Palocci e Aldo enfraqueceram ministro

BRASÍLIA. José Dirceu de Oliveira e Silva subiu a rampa do Planalto carregando os sonhos de sua geração, lembrando-se dos que tombaram sem ver aquela hora: a chegada da esquerda ao poder com Lula. Foi o que disse ao tomar posse. Foram esses sonhos, e também os muitos erros cometidos, que saíram com ele ontem do Palácio, depois de falar como guerreiro de volta ao campo de luta, no ato mais dramático produzido pela crise em curso.

Foram 30 meses de poder e trabalho intenso, de duros embates no interior do governo, de impulsos belicosos para dentro e para fora, de demonstrações desnecessárias de seu poder, que na primeira fase criaram a idéia do superministro, que lhe seria danosa à medida que fazia sombra ao presidente.

Mas, com erros e acertos, sua presença no governo era o símbolo, se não de um governo de esquerda, pelo menos da mais significativa alternância de poder já ocorrida no Brasil. Saindo, entretanto, pode prestar a Lula, ao PT e ao governo colaboração maior que os serviços prestados como ministro. Ou como timoneiro da travessia que levou Lula ao governo. Foi ele quem costurou as alianças, buscou um vice liberal, apoio de empresários, políticos e partidos de centro.

Nos primeiros 13 meses, reinou como um quase primeiro-ministro, alma e cérebro do governo. A Casa Civil cresceu e concentrou poderes. Era ao mesmo tempo o braço coordenador de todos os ministérios e a fonte de orientação da política parlamentar. Na Casa Civil funcionavam grupos de trabalho sobre os mais diferentes assuntos - de ecologia a educação. De seu sinal verde dependiam quase todas as iniciativas do governo.

Excessivamente centralizador, Dirceu trabalhava como um trator em duas frentes, entrando pela madrugada na segunda tarefa: a de articular apoios e construir a coalizão parlamentar. Sendo ele a expressão e a fonte de poder, todos queriam falar com ele. Dele dependiam nomeações e favores. E como isso era impossível, começaram as queixas, ao final do primeiro ano, em que o governo teve suas grandes vitórias no Congresso aprovando difíceis reformas.

Uma de suas revoltas, a versão de que ele perdeu a coordenação política depois do caso Waldomiro Diniz, quando na verdade esta decisão fora tomada pouco antes, em janeiro, diante da evidência de que as duas tarefas eram demais para um homem só, ainda que chamado Dirceu.

Com o escândalo Waldomiro, levou um tiro na asa e passou a estar para sempre na mira dos adversários. Por aqueles dias, em conversas reservadas, reconhecia que nunca mais seria o ministro que foi. Por isso, estava decidido a sair logo que a poeira baixasse. Mostrava tanta desilusão com os rumos da política econômica que admitia não ter valido a pena lutar tanto para conquistar o governo. Mas não saiu. Acreditava na própria recuperação e tinha esperanças de que Lula mudasse o ministério e os rumos da política econômica.

Dedicado apenas à coordenação administrativa, dizia-se feliz com sua nova tarefa. Trabalhava no mesmo ritmo, montava grupos de trabalho, planejava investimentos em infra-estrutura, tentava acelerar a execução orçamentária, enfrentava Palocci e outros, cobrava mais ação dos ministros mas não poderia esquecer a política, razão de toda a sua vida.

Esta a origem de um de seus erros, o embate com o ministro da Coordenação Política, Aldo Rebelo, nome que teve seu endosso quando acertou com Lula, em janeiro de 2004, que era hora de dividir suas funções no governo. Mas esperava, talvez, que Aldo fosse um subalterno, agindo sob sua orientação, o que não aconteceu. Passou a ver a mão dos assessores de Aldo em notas contra ele na imprensa, como se não tivesse outros desafetos.

Erro ao deixar transparecer discordâncias com Palocci

O PT passou a desejar a coordenação política de volta, sobretudo depois que os dois divergiram sobre uma questão essencial: a estratégia para a eleição dos presidentes da Câmara e do Senado. Dirceu apoiava a emenda da reeleição, que manteria João Paulo e Sarney, aliados leais, no comando das duas Casas. Aldo avaliou que para preservar o apoio do PMDB o governo não poderia derrotar o senador Renan Calheiros, já candidato ao lugar de Sarney. Aldo levou a melhor, a emenda foi derrotada e Renan eleito. Mas a derrota na Câmara, com a eleição de Severino Cavalcanti, teve custo muito mais alto. Mas aí, a culpa maior foi do próprio PT.

Outro de seus erros foi deixar transparecer, desde o início, suas discordâncias com a política econômica e seu embate interno com o ministro Palocci. Eles viriam a se entender, embora divergindo com freqüência em questões pontuais, sobretudo na questão dos juros. Mas o governo já perdera parte da força inicial e Palocci se fortalecera ainda mais com o crescimento da economia em 2004.

Dirceu já se convencera, nessa altura, de que Lula abraçara definitivamente a política econômica. Já não combatia seus fundamentos - metas de inflação e rigor fiscal - mas cobrava flexibilização na política de juros e no cumprimento de superávits superiores às metas fixadas. Em abril, dizia que se não houvesse uma interrupção na escalada dos juros, "o presidente vai ter que tomar uma atitude, não vai dar para segurar". Achava que os jurais reais deviam chegar ao final do ano na casa dos 6% (12% nominais). Em tal cenário, reduzindo-se o serviço da dívida, seria possível aumentar sensivelmente o investimento e incrementar o crescimento, calculava. Mas previa dificuldades, ainda que não uma crise tão grande como esta que acabou por tirá-lo do governo.

Na primeira conversa que teve com Lula sobre sua saída, na sexta-feira passada, ficou implícito que algumas concessões seriam pedidas também a Palocci. Se os juros deixaram de subir por razões técnicas, teria que haver também mais liberalidade no gasto público, respeitado o Orçamento e aproveitando-se a folga do gasto com o serviço da dívida.

Opção por aliança no Congresso não foi de Dirceu

Desde o final do ano Dirceu achava mesmo que a reeleição de Lula seria dificílima, se o governo não produzisse resultados mais concretos, tanto sociais como econômicos. E se não fosse dada mais atenção à construção das alianças.

Voltando aos erros, outro foi no relacionamento com os demais ministros, agindo como "capitão do time", definição usada por Lula na véspera do estouro do caso Waldomiro Diniz. Humilhou alguns, angariou antipatias. De notória lembrança, uma bronca telefônica que deu em Cristovam Buarque quando ministro da Educação. Recentemente, em conversa reservada, a um comentário sobre o ministro Olívio Dutra, das Cidades, disse que este nem devia ter sido ministro. Fazia comentários desairosos sobre muita gente no governo. Mais recentemente, não escondia sua impaciência com o próprio presidente. Negociara uma reforma ministerial em março, fizera compromissos e Lula desistiu de tudo, deixando-o em situação crítica. Mas teve a seu lado, no anúncio da saída, boa parte do ministério e uma penca de parlamentares.

Por mais erros que tenha cometido, não foi dele a opção pela aliança montada no Congresso, que está dando em casos de corrupção e no suposto mensalão. Em dezembro de 2002, com Lula eleito, Dirceu desejava uma aliança forte com o PMDB, que compartilharia o governo juntamente com os partidos de esquerda (PT, PSB, PV PC do B e ainda o PDT). Prometeu dois ministérios, mas Lula o desautorizou. A aliança com o PMDB viria mais tarde, mas quando PP, PL e PTB já haviam engordado e crescido, tornando-se fortes na base governista e sócios do governo, ocupando cargos estratégicos.

Dirceu no governo

"Vai ter tensão, vai ter contradição. Governar é duro e perigoso" - novembro de 2002

"Palocci, pode ter certeza que você terá no José Dirceu, na Casa Civil, uma fortaleza para defender a política econômica" - janeiro de 2003, discurso de posse

"Fiquei dois meses com gesso no braço, mas podia ficar o resto da vida, o que mostra minha capacidade de adaptação a situações indesejáveis. É para meus adversários verem do que sou capaz" - abril de 2003

"Não vamos dourar a pílula porque a queda que existe no país da atividade econômica é visível e seria ridículo se disséssemos o contrário" - maio de 2003, num seminário do PT sobre reforma da Previdência, antes de saber da presença de jornalistas

"Não tenho apego ao poder, já passei por todas as situações na vida. Sei viver na planície e no planalto. Sou uma pessoa humilde. O problema é que faço o que precisa ser feito" - julho de 2003

"Ex-presidente da República tem de cuidar da biblioteca, da memória da sua presidência e dos netos" - outubro de 2003, respondendo críticas de FH ao governo Lula

"Eu me excedi"- recuando das críticas a FH

"A vaca está no mínimo parada. O brejo é que anda crescendo" - outubro de 2003, sobre a situação econômica do país

"O governo não rouba, não deixa roubar e combate a corrupção" - outubro de 2003, respondendo a relatório de ONG que apontava que corrupção não diminuiu com Lula

"Vou deixar a Casa Civil para o José e a ação governamental para o Dirceu"- novembro de 2003, sobre a reforma ministerial, ao responder se aceitaria dividir o poder

"Todos estamos insatisfeitos, começando pelo presidente" - maio de 2004, reconhecendo os magros resultados alcançados pelo governo

"Vou ter que dar um beijo no Aldo para que parem de falar que estamos brigando"- junho de 2004, sobre as desavenças com Aldo Rebelo

"Neste governo sou culpado de tudo" - junho de 2004, sobre a denúncia de ação de espiões no Planalto

"Olha as rugas de preocupação. O Palocci e eu, ó, nós vamos é aproveitar a noite" - agosto de 2004, sobre a acusações de irregularidades na declaração de bens do presidente do BC, Henrique Meirelles

"Moisés levou 40 anos para conduzir seu povo à terra da liberdade" - março de 2005, no ato de comemoração dos 25 anos do PT

"Ele (Jefferson) quer se transformar em vítima, mas é réu" - 11 de junho de 2005

Eu, sair do governo? De jeito nenhum vou sair" - 11 de junho de 2005

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Legenda da foto: PESOS-PESADOS: Dirceu e Palocci disputaram o posto de ministro mais influente do governo Lula: críticas à política econômica foram freqüentes