Título: O mestre do pragmatismo que botou o PT e Lula lá
Autor: Soraya Aggege
Fonte: O Globo, 17/06/2005, O País, p. 9

Apelidado de Rasputin da esquerda, Stalin do PT e Projeto de Golbery, ministro domou o partido com mão de ferro

SÃO PAULO. Primeiro presidente do Partido dos Trabalhadores que não saiu do meio sindical, José Dirceu fez o PT crescer e entrar de vez no mundo da política convencional. A alta capacidade política do ministro demissionário é reconhecida por amigos ou inimigos, que o chamam internamente até de Rasputin da esquerda, Stalin do PT e projeto de Golbery do Couto e Silva. No entanto, é unânime a convicção de que Dirceu lançou o pragmatismo político no PT e levou Luiz Inácio Lula da Silva à Presidência da República.

Apesar dos protestos e dos apelidos que ganhou da esquerda, foi reeleito e passou sete anos na presidência nacional do partido. Antes, foi secretário-geral, secretário de formação política e tesoureiro de núcleo.

Dirceu aparelhou e profissionalizou o partido, que ao ser fundado era dominado pelos sindicalistas do ABC chefiados por Lula e por setores da Igreja Católica e movimentos populares. Com a sua gestão, o PT ganhou mais militantes (chegando aos atuais 820 mil), elegeu dezenas de prefeitos em capitais (hoje são 200 cidades administradas pelo partido) e chegou ao governo de vários estados.

- Dirceu é meu inimigo. Mas reconheço que ele é o quadro mais bem preparado do PT, para o bem ou para o mal. É ele quem conhece a máquina e quem é capaz de grandes articulações - disse a senadora Heloisa Helena (PSOL-AL).

Prisão, exílio e clandestinidade

A história política de Dirceu começou antes do PT, ainda na década de 60, no movimento estudantil, da resistência à ditadura, da clandestinidade, do exílio e da prisão. Dirceu já se chamou Daniel, quando treinava guerrilha em Cuba. Voltou ao Brasil clandestinamente, como Carlos Henrique, depois de fazer uma plástica que mudou seu rosto. Nem sua mulher na época, Clara Becker, sabia que Carlos Henrique na verdade se chamava José Dirceu.

"Minha geração encontrou no PT a realização do sonho de um partido socialista, democrático, um Partido de Trabalhadores no Brasil", escreveu, em uma biografia feita pelo PT. Dirceu foi apresentado a Lula, em 1979, por um companheiro de ALN (Ação Libertadora Nacional), Frei Betto:

- Lula não queria o aparelhamento da esquerda, mas eu pude apresentá-los - lembra Frei Betto, que era assessor especial de Lula e também deixou o governo este ano.

Um grande articulador

A aproximação com Lula se deu ao longo dos anos. Desde o início dos anos 90, passaram a trabalhar no projeto de poder político, como faces diferentes da mesma moeda: Lula como o carismático líder operário e Dirceu como o grande articulador.

"Quando assumi a direção do PT em 1995, o principal desafio era o de combinar o partido de militância popular, organizado pela base e de luta social, com um partido que nasceu para ser governo", escreveu Dirceu em 2001, sobre os 21 anos do PT na época e ainda na campanha pela eleição de Lula.

Outro inimigo de Dirceu, o sociólogo Francisco de Oliveira, também elogia sua capacidade:

- Ele foi mesmo o ideólogo do pragmatismo que atinge o PT. Tirou o partido do amadorismo. Pena que o descaracterizou. Além disso, ele tem mais capacidade política que o próprio Lula.

A volta ou não de Dirceu à presidência do PT ainda é uma incógnita. Embora seja o presidente eleito, cujo mandato só se encerraria em dezembro, ele pediu afastamento formal, deixando José Genoino em seu posto. A posição do PT a respeito do retorno de Dirceu à direção do partido é que ele poderá continuar atuante dentro do partido como membro do diretório nacional, mas não pode voltar para a presidência. Segundo o estatuto do partido o afastamento é uma decisão irreversível. Dirigentes dizem que existe uma brecha estatutária para que ele retorne à presidência, mas isso só poderia acontecer depois do Processo de Eleição Direta (PED) que acontecerá em setembro.

COLABOROU Ricardo Galhardo

Oliveira vê aproximação com PSDB

'Os dois partidos são estrelas-gêmeas', diz sociólogo

SÃO PAULO. O retorno de José Dirceu para a Câmara dos Deputados é um estratagema político e não um processo de separação do governo Lula, na avaliação do sociólogo Francisco de Oliveira, um dos fundadores do PT, que se tornou dissidente e uma espécie de inimigo do ministro. Na prática, diz ele, Dirceu deve cuidar de um aprofundamento das alianças e, em médio prazo, promover um sistema de coabitação com o PSDB e o PFL, para ajudar o presidente Luiz Inácio Lula da Silva a se manter em "fogo lento".

- Lula começa a caminhar apenas com o consentimento da oposição. Mas, para o PSDB e o PFL, não interessa um tsunami político. A coabitação é muito possível - disse.

Na avaliação de Oliveira, o projeto político de Dirceu é de longo prazo, como o do ex-presidente Fernando Henrique Cardoso. Na Câmara, Dirceu terá chances de cuidar desse estratagema, segundo ele.

- A carga de explosivos seria menor, ou seja, a oposição passa a se abrandar com os desgastes diretos a Lula - avalia Oliveira.

Para o sociólogo, o PT perdeu sua "aura transformadora" e se tornou um partido muito parecido com o PSDB.

- São estrelas-gêmeas da política brasileira e podem coabitar com tranqüilidade - disse Oliveira. (S. A.)

O Golbery do presidente Lula

Eminências pardas do Planalto costumam atrair crises

O ministro demissionário da Casa Civil José Dirceu se formou na política como um dos líderes do movimento estudantil que sacudiu o Brasil no final dos anos 60. O general Golbery do Couto e Silva, que nos governos Geisel e Figueiredo também ocupou a pasta, tomou gosto pelo poder conspirando nos quartéis, até se tornar uma figura emblemática do movimento de 64. Se na gênese das respectivas biografias políticas os dois não têm nada em comum, no exercício do cargo, como colaboradores íntimos de três presidentes, a trajetória de ambos se confunde até mesmo na maneira tumultuada como deixaram o posto.

Em outubro de 2002, saindo da campanha de Luiz Inácio Lula da Silva como homem forte do presidente eleito, Dirceu rejeitava a comparação com Golbery, afirmando mineiramente que não tinha a cultura do general e, principalmente, lembrando que o país já não vivia a ditadura na qual florescera a influência da eminência parda dos presidentes Ernesto Geisel e João Figueiredo. Mas a comparação sempre esteve no pano do jogo político, e consolidou-se à medida que ele, por seu temperamento e pela importância do cargo, se firmava como protagonista das mais importantes disputas do governo do PT.

Golbery também esteve na crista dos principais movimentos dos governos de Geisel e Figueiredo. Durante a crise militar que se abriu em seguida à morte do jornalista Wladimir Herzog e do operário Manoel Fiel Filho em dependências militares de São Paulo, entre outubro de 1975 e janeiro de 1976, o ministro-chefe do Gabinete Civil ficou todo o tempo ao lado de Geisel. Sua influência foi determinante na decisão do presidente de demitir o comandante do II Exército, como uma recado para a linha dura, combatida por Golbery. O general também teve atuação de destaque, influenciando o presidente, nos episódios do Pacote de Abril, em 1977, e na pulverização da candidatura a presidente do ministro do Exército, Silvio Frota. Mantido no cargo por Figueiredo, Golbery teve participação decisiva na reformulação do quadro partidário brasileiro. Em agosto de 1981, quatro meses depois da explosão de uma bomba no Riocentro em nova manifestação da linha dura, Golbery deixou o governo.

Durante quase todo o tempo em que esteve no cargo, Dirceu igualmente enfrentou tempestades, angariou desafetos e colecionou críticas de colegas de partido. No atacado, seu nome esteve no centro das duas mais graves crises enfrentadas até agora pelo governo Lula. Há um ano e meio, Dirceu ficou em situação delicada quando um de seus principais assessores, Waldomiro Diniz, foi acusado de se envolver em negociatas com o bicheiro Carlinhos Cachoeira. E há dez dias sua posição começou a ficar insustentável com as denúncias do deputado Roberto Jefferson de que, com o conhecimento do ministro, o PT pagaria um mensalão a parlamentares para votar com o governo.

De resto, Golbery e Dirceu não foram os únicos a ter problemas como eminências pardas do Planalto. No governo de Itamar Franco, o secretário da Casa Civil, Francisco Hargreaves, enfrentou tempestades e chegou a se afastar temporariamente do cargo. No primeiro mandato de Fernando Henrique, o ministro Sérgio Motta, então o homem mais influente junto ao presidente, teve de se refugiar em Portugal, em meio a denúncias de que estaria à frente de um esquema de compra de votos para a reeleição de FH.

Dirceu sobre o PT

"Quem dirige o PT sou eu. Na campanha, agimos como se estivéssemos perdendo. Está proibido discutir nomes, cargos, o oba-oba e o já ganhou" - outubro de 2002, antes do 2º turno

"O PT somos nós. Temos de defender o governo. Realizaremos o sonho que tínhamos ao eleger Lula" - junho de 2003, num encontro de vereadores petistas

"Estou com saudade do PT" - julho de 2003

"A oposição pode vir quente que estamos fervendo" - setembro de 2003, desafiando a oposição para as eleições de 2004

"Tenho vivido momentos de angústia. Tomo medidas duríssimas que contrariam antigas convicções. Mas temos que ter responsabilidade com a nação" - novembro de 2003, em reunião com a bancada petista no Senado

"Como é possível errar tanto num só dia?" - fevereiro de 2004, sobre os senadores do PT Ideli Salvatti e Aloizio Mercadante, que contrariaram as bancadas com proposta de CPI para o caso Waldomiro Diniz

"Peço desculpas aos aliados e aos companheiros do PT pelo constrangimento que estou causando. Devo desculpas por ter trazido essa pessoas para o nosso meio" - fevereiro de 2004, sobre Waldomiro, em jantar com a bancada petista

"Assim como cinderela vira abóbora, eu viro uma estrelinha do PT" - agosto de 2004, sobre suas atividades eleitorais nos fins de semana

"Nós termos perdido, o PT, foi um erro grave. Talvez tenha sido o mais grave erro que cometemos até hoje"- abril de 2005, sobre a eleição de Severino Cavalcanti para a presidência da Câmara

Legenda da foto: HORA DA VITÓRIA: Lula abraça Dirceu antes de fazer seu primeiro pronunciamento como presidente eleito