Título: UMA NOVA E SUTIL REVOLUÇÃO CULTURAL NO IRÃ
Autor: José Meirelles Passos
Fonte: O Globo, 19/06/2005, O Mundo, p. 35
O Irã está vivendo uma nova, gradual, sutil e, ao que tudo indica, irreversível revolução. É pacífica e se manifesta nos costumes. Trata-se de uma revolução repleta de nuances. As mulheres são seu principal veículo e, ao mesmo tempo, condutor.
O espesso véu negro - que a lei islâmica implantada 25 anos atrás pelo aiatolá Khomeini tornara obrigatório para cobrir todos os fios de cabelo - está sendo substituído por lenços finos de seda de várias cores. E que agora cobrem apenas a parte posterior da cabeça, tendo habitualmente um par de óculos escuros como suporte. O chador - vestimenta negra que cobria as mulheres até os pés - também está saindo de cena, a não ser nos lares mais fundamentalistas. Usa-se agora uma espécie de meia capa de chuva - cujo comprimento muitas vezes não chega até o joelho - e calças que revelam claramente seu conteúdo. Jeans parecem ser a preferência nacional.
Os sapatos fechados vêm sendo trocados por sandálias vistosas e até por tamancos. Acrescente a isso um toque inimaginável até pouco tempo atrás: a maquiagem, em alguns casos pesada, símbolo da decadência ocidental na visão dos aiatolás. Outra notável transgressão está bem visível: narizes retocados ou refeitos por cirurgião plástico. É comum ver jovens caminhando sob o sol com uma bandagem que denuncia uma recente mudança de aparência.
Mulher-Gato e Tarzan em festa a fantasia em casa
Detalhes comuns - talvez até fúteis no Ocidente - são no Irã símbolo da insatisfação e da ousadia. Num país onde ainda hoje a lei proíbe a uma mulher cumprimentar um homem em público dando a mão a ele, sob pena de sofrer chibatadas, esses arroubos são mais do que significativos.
- O risco ainda está presente. Amanhã pode voltar a repressão feroz. Aqui não existe lógica e vivemos em meio a dilemas e contradições. A diferença é que hoje a busca da dignidade é mais intensa que o medo - diz Maryam, 28 anos, estudante de medicina.
Neste país onde 65% da população tem menos de 25 anos, os rapazes também vêm se soltando. Cabelos longos, às vezes presos num rabo-de-cavalo, fazem parte de uma moda em que camisetas com frases em inglês dizem às vezes muito mais do que simples marcas como Calvin Klein. São um ato de ousadia.
Casais já se atrevem a caminhar pelas ruas de mãos dadas. Nos restaurantes, rapazes põem a mão no ombro da namorada e servem comida diretamente em sua boca. Elas, que até 20 anos atrás se casavam aos 13 ou 14 anos, por meio de arranjos familiares, hoje esperam pelos menos até os 25 anos para fazer isso.
Talvez seja coincidência, mas o fato é que a Polícia Moral - uma milícia de zelosos guardiões dos preceitos fundamentalistas - está cada dia menos presente nas ruas. Ao mesmo tempo, também são raras as aparições de mulás com seus longos trajes e turbante na cabeça.
- Eles viraram símbolo de corrupção. São malvistos pelos jovens - diz Naser, 30 anos, publicitário.
Segundo sociólogos locais, a crença religiosa vem desmoronando desde que os mulás e aiatolás assumiram o poder, há 25 anos. A força dessa revolução dos costumes, ainda pouco valorizada no Ocidente, já levou, por exemplo, à suspensão da lei que determinava que adúlteros fossem apedrejados até a morte.
A lista de desafios aumenta dia a dia. São gestos corriqueiros, mas de grande valor nesta sociedade reprimida. Ter um cachorro, por exemplo, é sinal de coragem. Afinal, esses animais são considerados sujos pela lei islâmica. O próximo passo, dizem os iranianos, será sair à rua com eles, o que pode resultar em prisão.
Hoje, há dois Irãs: o das ruas e o do interior das casas, onde inclusive há festas a fantasia em que homens se vestem de Tarzan e mulheres usam a roupa colante da Mulher-Gato. São regadas a bebidas contrabandeadas. O proibido rock n'roll é fundo musical. Se a Guarda Revolucionária bate à porta, a reação tem duas etapas: dizer que se trata de uma reunião religiosa e, em seguida, pôr dinheiro no bolso do agente.