Título: O MENSALÃO DOS RURALISTAS
Autor: João Pedro Stédile/sérgio Pedro Gorgen
Fonte: O Globo, 21/06/2005, Opinião, p. 7

A literatura sociológica brasileira registra que, ao longo de décadas, a oligarquia rural, agora modernizada como "agronegócio", sempre manteve suas altas taxas de lucro e seus privilégios às custas de benesses transferidas pelo Estado brasileiro. Ou seja, os governos garantiam que parte da mais-valia social recolhida de todo o povo engordaria seus patrimônios familiares. Isso se repetiu e se aprofundou também nos últimos governos.

Revisemos: renegociação das dívidas a longo prazo (25 anos); isenção de impostos na exportação de produtos agropecuários (Lei Kandir) e na importação de insumos; crédito facilitado e barato para modernização da frota de tratores, máquinas, equipamentos (o Moderfrota, com dinheiro do FAT), armazenagem e irrigação; estímulos à exportação (a OMC denunciou subsídios de 7 bilhões de dólares nos últimos anos); liberação dos transgênicos sem análise de riscos; crédito fácil para custeio; manutenção de índices de produtividade agrícola e pecuária da década de 70 para impedir o avanço da Reforma Agrária.

Mesmo com a vitória do PT, que era para mudar, os ruralistas conseguiram indicar o presidente do seu sindicato, Roberto Rodrigues, para ministro da Agricultura. Com isto nadaram de braçada por alguns anos, modernizaram o parque de máquinas, expandiram monoculturas, esnobaram riqueza. Devastaram matas e cerrados, destruíram ambientes naturais. Impuseram os transgênicos da Monsanto como fato consumado, com royalties e tudo. A agricultura camponesa foi desprezada e a Reforma Agrária rechaçada como alternativa econômica e social. A cantilena - repetida pela mídia - chegou a iludir muitas pessoas de boa vontade!

Não durou muito o novo ciclo de opulência do latifúndio brasileiro. Sua recente onda modernizadora - o agronegócio - teve fôlego curto. A insustentabilidade econômica, social e ambiental se revelou mais cedo do que se imaginava. As primeiras dificuldades no mercado internacional de commodities e a mudança conjuntural na taxa de câmbio do dólar mostraram que, apesar de todos os subsídios e facilidades concedidos pelo Estado brasileiro, este modelo não se sustenta. Os custos subiram e os preços despencaram. A crise se instalou no país todo, mesmo onde não aconteceram adversidades climáticas.

O novo ciclo do velho modelo agro-exportador se esvaiu diante de interesses externos poderosos. E aqueles que louvaram o neoliberalismo no campo sentiram o peso da ditadura de não mais de dez grandes transnacionais que controlam o mercado agrícola, os preços, a agroindústria e agora querem controlar as sementes e a biotecnologia. Entregaram-se de corpo e alma e agora choram o abandono. Só que trazem a conta do abandono de novo para os braços do Estado brasileiro. Nisto também repetem a história: são liberais - até neoliberais - nas vantagens, mas estatistas no rateio dos prejuízos.

Vejam a conta que querem apresentar ao povo brasileiro. De novo!

As dívidas renegociadas em 1995, 1999 e 2002 (uma herança do presidente FHC), roladas em 25 anos, com juros de 3% ao ano, garantidas pelo Tesouro Nacional, só em contratos acima de R$100.000 somam um valor global de R$26 bilhões. O Tesouro Nacional equaliza os juros dessas dívidas num valor anual superior a R$3,38 bilhões. Ou seja, o Tesouro paga parte dos juros que eles não querem pagar. E nunca se ouviu o senhor Palocci reclamar disso. Da dívida total, porém, R$8.113.656.680 estão vencidos e não pagos. E o número de contratos de latifundiários neste calote permanente é de apenas 29.840. Como há casos de mais de um contrato por devedor, o cálculo generoso é que os participantes dessa mamata não ultrapassem a 20 mil grandes proprietários. Portanto, o Tesouro cobre R$3,38 bilhões ao ano, o que dá ao redor de R$300 milhões ao mês, para garantir a vida de 20 mil fazendeiros, representando uma transferência do governo a cada um deles de 15 mil reais mensais. Está aí o agromensalão!

A proposta levada ao governo é de começar a pagar essas dívidas vencidas apenas em 2026, isto é, no ano de São Nunca. E ameaçam cercar Brasília e pressionar com seus tratores, pois povo é que não representam.

Na verdade, essas dívidas são impagáveis e o agronegócio é economicamente inviável. E se é para subsidiar, que o governo subsidie os pequenos e os médios agricultores que são os que geram trabalho (80% dos empregos do campo), distribuem renda, respeitam o meio ambiente e produzem 80% de toda a produção agrícola nacional, tanto para o mercado interno como para exportação.

Esperamos que essas crises ajudem a sociedade a debater a necessidade de um verdadeiro projeto de desenvolvimento nacional, que inclua um modelo econômico e agrícola voltado para a solução dos problemas da população. O povo precisa de trabalho, terra, alimentos baratos, moradia e educação. Caso contrário os governos seguirão reféns ou coniventes com a manutenção dos privilégios da turma do um por cento que têm quase metade das terras do país nas mãos.

SÉRGIO ANTÔNIO GÖRGEN é deputado estadual (PT- RS). JOÃO PEDRO STEDILE é dirigente do Movimento Sem Terra (MST).

Só querem pagar dívidas vencidasa partir de 2026, ou seja, no diade São Nunca