Título: CORTAR NA CARNE
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Fonte: O Globo, 22/06/2005, Opinião, p. 6

Um encontro sobre agricultura familiar no interior de Goiás deu oportunidade ao presidente Luiz Inácio Lula da Silva para defender-se, e a seu governo, dos efeitos da série de denúncias desfechadas pelo deputado petebista Roberto Jefferson, responsável pela mais séria crise política dos últimos tempos, uma ameaça viva, assumida e declarada, ao ex-chefe da Casa Civil, José Dirceu, e à cúpula do PT.

Lula adotou um tom de campanha ao colocar-se como alvo daqueles que estariam preocupados com a sua reeleição e supostamente incomodados com a política social que executa. Não deixou, também, de dar um balanço das ações efetivas contra esquemas de corrupção existentes no setor público, um tema em que o presidente tem mesmo o que mostrar.

A argumentação presidencial, porém, foi rarefeita quando abordou a questão específica das denúncias de Jefferson. Além de não tratar de forma direta do mensalão, Lula procurou reduzir as acusações e o problema da ocupação espúria de postos na administração direta e em estatais ao fato de "um cidadão do terceiro escalão" ter embolsado três mil reais em propina. O presidente se referia a Maurício Marinho, funcionário de carreira dos Correios, flagrado, com imagem e som, aceitando dinheiro de um fornecedor da estatal, apresentando-se como representante do PTB e emissário do ainda presidente nacional do partido, Roberto Jefferson. Infelizmente para o país, o problema não é tão simples, não se esgota em Marinho.

Jefferson, convertido num livre atirador que diz nada ter a perder na cruzada contra Dirceu e companheiros, demonstrou no programa "Roda Viva", da TV Cultura, como a vida política e o relacionamento entre partidos e Executivo se degradaram. Deputado com mais de duas décadas de Congresso, conhecedor dos bastidores do governo Collor e do esquema PC Farias, Jefferson deixou claro ser prática normal o apoio a governos em troca do direito de os partidos nomearem correligionários para postos-chave em estatais e autarquias. O deputado foi além e defendeu como aceitável que os nomeados, a partir desses cargos, arrecadem dinheiro para os respectivos partidos. Com ressalvas, destacou o deputado: de forma legal, sem contrariar o interesse do setor público e da empresa privada.

O que é impossível, ressalte-se. Além de antiético e repulsivo, o loteamento de cargos públicos com essa finalidade resulta em prejuízo para o Estado, pois, por óbvio, essas comissões, mesmo legalizadas, terminam embutidas no custo dos contratos a serem pagos pelo contribuinte.

Portanto, qualquer programa mais amplo de moralização e combate à corrupção precisa banir esse tipo de nomeação e profissionalizar ao máximo a administração direta e estatais. Até o presidente do PT, José Genoino, acaba de propor o corte dos cerca de 20 mil cargos ditos de confiança existentes na União, na verdade um balcão de empregos à disposição da fisiologia.

Se quiser, Lula pode começar a agir contra os desvios da vida política tomando a iniciativa de extinguir esses cargos e sanear estatais e órgãos da administração direta infiltrados de arrecadadores de partidos. Seria cortar na carne, como ele próprio prometeu.

A agenda para saneamento da vida política está pronta