Título: Função do Estado
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Fonte: O Globo, 23/06/2005, Opinião, p. 6

A história da saúde pública no Brasil é uma história de crises. Jamais tivemos um período de avanço, em que a população fosse atendida por um setor público eficiente e eficaz.

Em 1986, a Oitava Conferência Nacional de Saúde rejeitou a estatização imediata do sistema, optando apenas pelo fortalecimento e expansão do setor público. Ao setor privado dar-se-ia o caráter de serviço público concedido sob contrato. Com isso criaram-se as condições para um pacto entre a "esquerda sanitária" e as elites, insensíveis à problemática social: de um lado, os grupos dedicados à mercantilização da saúde; do outro, uma esquerda oportunista, capaz de vender a alma ao diabo. Os chamados pensadores da saúde só pensavam na possibilidade de ocupar cargos na administração pública. No mais, influenciados pelos ventos neoliberais que sopravam forte da Europa e EUA, elaboraram um discurso de submissão aos empresários da saúde, justificando-o pela necessidade de um Estado moderno, com a saúde vista como um negócio igual a qualquer outro.

O que deveria ser um marco na redenção da saúde pública não passou de um encontro preparatório do futuro sistema, que ganhou corpo com a Constituição de 1988 e materializou-se, dois anos após, com a Lei Orgânica da Saúde. Assim, nascia o Sistema Único de Saúde (SUS), com o grave defeito de origem de permitir, ainda que de forma complementar, participação de instituições privadas na assistência pública à saúde.

É inadmissível que um setor que segue a lógica do lucro se aventure num campo que deveria ser da responsabilidade exclusiva do Estado. Isso torna o SUS mero guarda-chuva protetor do setor privado, para onde é drenada a maior parte dos seus recursos. Agrava essa distorção a proposta de descentralização na gestão dos serviços, isto é, transferência de responsabilidades e recursos na forma de Fundos de Saúde para o gestor municipal. O que esperar de um sistema que nasce híbrido e confuso na definição das fontes de financiamento?

A crise no Rio mostrou a fragilidade do SUS. A dificuldade de gerenciamento, fruto de uma estrutura complexa, pesada, torna-o lento nas decisões. Junte-se a isto a carência de recursos, em face de um orçamento minguado do Ministério da Saúde. O SUS deve dar lugar a uma política formulada em outras bases, isto é, na qual o investimento sobreponha-se ao discurso gerencial e o Estado cumpra o seu papel de garantidor das políticas públicas. O povo merece algo melhor que o SUS.

THELMAN MADEIRA DE SOUZA é médico.

O setor privado deve ficar forada área dasaúde pública