Título: RAÍZES DA CRISE
Autor: EMERSON KAPAZ
Fonte: O Globo, 23/06/2005, Opinião, p. 7

Por quinze dias durante toda a programação da TV Globo, incluindo o horário nobre, o Instituto Brasileiro de Ética Concorrencial (Etco) e a Rede Globo levaram ao ar uma campanha inédita, sobre o tema "Valores Éticos", com objetivo bem delineado: propor à sociedade uma reflexão em torno de práticas e hábitos informais, proscritos por lei, mas que no dia-a-dia muitas vezes são considerados normais.

Coincidentemente, a iniciativa surgiu num momento de intenso debate quanto às práticas éticas no país, motivado por uma série de denúncias em torno da gestão do Estado. Contudo, a campanha é fruto de uma história bem anterior e que se confunde com a trajetória do Etco nos seus dois anos de existência.

No início, o objetivo foi trazer à luz os temas da sonegação, do contrabando e da adulteração de produtos, à época vistos apenas como casos de polícia. Nesta etapa, a tese dominante era mostrar que o quadro de ilegalidades comprometia seriamente o desenvolvimento e a geração de empregos e salários formais pelas empresas que pagavam impostos.

A conclusão dessa etapa se deu com a divulgação de um estudo elaborado pela consultoria McKinsey demonstrando que a informalidade consumia 4 em cada 10 dólares da riqueza nacional. Foi quando o governo passou a considerar a questão da ética na concorrência como uma prioridade estratégica.

Em paralelo, o instituto iniciou uma cruzada, também vitoriosa, para discutir com juízes e parlamentares formas eficazes, imediatas e coerentes de coibir as práticas ilegais que faziam forte diferencial competitivo. O trabalho culminou, em parte, no fim da concessão de liminares a fraudadores de combustível e, em parte, com a CPI da Pirataria que deu nome e CPF de grande número de empresas e pessoas envolvidas com o comércio ilegal. Como desdobramento surgiu ainda o Conselho Nacional de Combate à Pirataria que une governo e sociedade num mesmo espaço de diálogo.

A campanha "Valores Éticos" correspondeu ao terceiro, e certamente, mais complexo elo de toda essa cadeia de acontecimentos. Isso porque o seu alvo eram hábitos culturais cristalizados por práticas que vêm desde o tempo do Brasil colonial. Havia entre os idealizadores da campanha plena consciência de que discutir valores éticos envolvendo, por exemplo, funcionários públicos e fiscais redundaria em polêmicas, mas havia também a consciência de que situações delicadas exigem atitudes firmes e corajosas. Entre um extremo e outro, o propósito dominante foi o fortalecimento das instituições de modo a contribuir para que os cidadãos e a sociedade apóiem, nas atitudes cotidianas, os que respeitam a lei, rechaçando os que não a respeitam.

Episódios mostrados recentemente pelos meios de comunicação, como o pronunciamento do deputado Roberto Jefferson, revelando os bastidores dos financiamentos das campanhas políticas causam indignação. Fatos que ferem a ética não são monopólio de políticos. Embora pontuais, se sucedem com maior ou menor intensidade em meio a empresários, funcionários públicos, fiscais, profissionais liberais e cidadãos comuns. Daí a mensagem chave da campanha: "Não, não é esse o tipo de brasileiro que eu quero para o futuro do meu país."

Ao dizer não, mesmo que da forma mais simples - obediência ao sinal de trânsito, exigência da nota fiscal, não comprando produto pirata - o cidadão estará colaborando num grande mutirão transformador da sociedade.

Há mais de dois séculos Adam Smith, em "A riqueza das nações", definiu o drama da corrupção como um fenômeno comum aos países em fase de modernização. Inspirado na experiência inglesa, demonstrou como os beneficiários da velha corrupção entram na liça, sem trégua, para manter privilégios, ferrenhos opositores que são de tudo que possa beneficiar a democratização dos direitos e a universalidade da cidadania.

Guardadas as proporções no tempo e na História, o Brasil reúne todas as condições para trilhar idêntico caminho, se fortalecer as suas instituições e contar com a manifestação prática dos cidadãos. Se a crítica e o debate são o oxigênio da democracia, o cidadão e a sociedade são os alicerces da renovação de hábitos, costumes, enfim dos valores éticos e morais. Pois o que é uma nação senão suas instituições, cultura, leis e seus valores?

Eis o objetivo primordial da campanha "Valores Éticos". Tocar no nervo sensível da verdadeira crise. A crise ética, que antecede aquela que está na raiz de todas as outras. Em síntese, mais do que indignação, a ética é ação. Um bem público construído por todos, com pequenos gestos, pequenas atitudes que tornam a ética indissociável da rotina cotidiana.

EMERSON KAPAZ é presidente do Instituto Brasileiro de Ética Concorrencial.