Título: 'Superávit maior é desnecessário, constrangedor'
Autor: Tereza Cruvinel
Fonte: O Globo, 23/06/2005, O País, p. 12

Nova ministra reconhece que meta fiscal precisa ser cumprida, mas diz que é hora de acelerar a execução do Orçamento

Mesmo cautelosa ao falar da função, a nova chefe da Casa Civil, Dilma Rousseff, não deixa dúvida de que sabe o tamanho de seu poder e de que está disposta a exercê-lo integralmente. Em entrevista ao GLOBO, indica que sustentará pelo menos uma bandeira de seu antecessor, José Dirceu, a do combate ao superávit excessivo. Diz achar desnecessário um superávit maior do que o estabelecido, o que indica um primeiro conflito com a equipe econômica. Falou de seu passado na luta armada e refutou a fama de mandona: "Parece até que vivo num mundo de homens suaves e meigos". E negou que seja intransigente. "Tenho opiniões claras e brigo por elas. Mas se me convencem, eu mudo. Não sou estúpida."

A senhora assume uma Casa Civil que foi muito poderosa até aqui, num momento de crise política. Como pretende ajudar o governo?

DILMA ROUSSEFF: A principal contribuição que tentarei dar é na melhora da dinâmica administrativa, dando mais velocidade à execução dos projetos do governo. Em 15 ou 20 dias pretendo selecionar, entre projetos prioritários, os que estão mais amadurecidos e podem ser acelerados. Vamos dimensionar os projetos segundo sua importância. É preciso fazer um diagnóstico de cada projeto e selecionar aqueles em que vamos concentrar recursos e energia, no tempo que nos resta de governo. Um ano e meio. Um ano, se consideramos que a partir de agosto de 2004 o país estará em campanha eleitoral.

O presidente pediu cuidado especial com alguns?

DILMA: Ele pediu atenção especial a cinco projetos: a execução das PPPs, a transposição das águas do Rio São Francisco, a ferrovia Transnordestina, a recuperação da malha rodoviária, o biodiesel e o conjunto de programas sociais. Outra recomendação é quanto a um conjunto de intenções de investimentos que vamos conferir, avaliando quais podem ser logo concretizadas e identificando os problemas que estejam dificultando a realização de outras. Há intenções importantes na mineração, em infra-estrutura, na siderurgia e na petroquímica.

Haverá dinheiro para a execução destes projetos, considerando-se a lentidão da execução orçamentária e as exigências da política fiscal?

DILMA: A meta de superávit fiscal estabelecida tem que ser atingida. É um pressuposto da credibilidade. Mas o Orçamento aprovado precisa ser executado. Superávit maior, a meu ver, é desnecessário, constrangedor. Sem deixar de cumprir a meta fiscal, estamos na hora de gastar o possível, mas de gastar bem, fazendo o Orçamento o mais real possível. É difícil gastar, não é algo trivial.

Os ministros gastam mal ou são impedidos de gastar?

DILMA: Em geral gastam bem, eu diria até que fazem milagres com os recursos escassos de que dispomos. Mas é preciso considerar que herdamos uma conjuntura econômica muito difícil, tivemos que tomar medidas duras, como elevar o superávit e os juros, e tudo isso prejudicou a execução orçamentária. Mas a hora é de acelerar.

A senhora será, como era Dirceu, uma defensora dos ministros setoriais no embate com a área econômica...

DILMA: Vamos retirar a palavra embate... Será minha tarefa acompanhar as ações dos demais ministérios, verificando inclusive a natureza das dificuldades que enfrentam.

O que a senhora quis dizer, ao tomar posse, quando afirmou que seu trabalho será também político e não apenas técnico?

DILMA: O que eu disse é simples: que a segregação entre a ação técnica e ação política jamais será absoluta. Governar é fazer escolhas políticas, cada projeto reflete uma opção política. Neste sentido, não há gestão apolítica, embora a boa gestão tenha que estar subordinada aos requisitos técnicos. Na configuração do governo, tudo o que disser respeito à articulação parlamentar será atribuição da secretaria de coordenação política. A Casa Civil estará voltada para a coordenação gerencial, mas isso não dispensa seu ocupante de levar em conta aspectos políticos do relacionamento institucional, seja com o Parlamento ou os estados. Saberemos encontrar a mistura entre necessidades políticas e exigências técnicas.

A senhora teria problema em trabalhar com o ministro Aldo Rebelo ou prefere um petista como Jaques Wagner?

DILMA: Eu trabalharia bem com qualquer um, mas esta é uma decisão exclusiva do presidente da República.

E as nomeações? De quem será a tarefa?

DILMA: Esta será uma atribuição da coordenação político-parlamentar, embora isso não exclua consultas mútuas.

Qual é o seu diagnóstico da crise? Acha que ela decorre da luta político-eleitoral que se avizinha, como disse o presidente, ou até mesmo de intenções golpistas, como dizem setores do PT? Ou que o PT acabou reproduzindo as práticas políticas que tanto combateu?

DILMA: Pode haver de tudo um pouco nesta conjuntura e as investigações nos darão respostas mais claras. É óbvio que quando a disputa eleitoral se avizinha os problemas são superdimensionados e os ruídos amplificados. Se houve erros, precisam ser combatidos, mas sem esquecer os graves problemas estruturais que estão na raiz de tudo, como as distorções do sistema político. Elas são uma fonte de desvios crônicos, que em alguns momentos ganham mais nitidez. Está clara a necessidade da reforma político-eleitoral e sobretudo de mudanças no sistema de financiamento de campanhas. Todos estes fatores estão presentes na atual conjuntura mas não são suficientes para provocar ruptura. O mercado e os investidores estão percebendo claramente isso...

O mercado tem se comportado com alguma tranqüilidade, mas os investimentos não estão sendo prejudicados?

DILMA: Mercado e investidores estão tendo uma percepção mais clara que alguns agentes políticos. É um dado interessante. Externam a compreensão de que a crise pode ser enfrentada com maturidade. Com apurações rigorosas, como está fazendo o governo, com a investigação parlamentar, por meio da CPI, mas sem ruptura, com os poderes e as instituições funcionando normalmente. Do contrário, seria perverso. Uma CPI em princípio é uma iniciativa virtuosa, e por isso mesmo não pode ser um fator de conturbação da atividade legislativa, da economia nem da administração pública. As intenções de investimento são tomadas levando em conta o risco e a estabilidade política de um país. Em relação ao Brasil, parece estar havendo a compreensão de que um governo democrático está sujeito a problemas de toda ordem, inclusive de corrupção, devendo saber lidar com eles dentro do marco democrático, aperfeiçoando os sistemas de controle e zelando pela elevação do padrão ético. Nós vamos superar esta crise alcançando mudanças positivas.

A senhora é mandona?

DILMA: Há algo interessante nesta lenda. Você nunca ouve dizer que certo homem é mandão. Em nossa cultura, mandar sempre foi visto como atributo masculino. Já o ato de mandar numa mulher é visto como uma excrescência. Pelo que falam de mim, parece que vivo num mundo de homens meigos, dóceis, gentis, cordatos e suaves. E eu, pelo contrário, sou áspera, indócil e autoritária no meio de tanta candura... Nunca vejo um jornalista descrever um integrante da República como mandão.

Seu discurso foi cheio de flexões de gênero, tipo brasileiros, brasileiras. Algum significado especial em ser a primeira mulher a ocupar a Casa Civil?

DILMA: Em todas as áreas as mulheres enfrentam mais dificuldades para comprovar sua competência profissional. As brasileiras vêm acumulando conquistas, mas ainda estão sub-representadas no Parlamento e no poder político. Se minha escolha ajuda a romper barreiras, devo compartilhar esta graça com todas as mulheres brasileiras, louvando a sensibilidade do presidente Lula.

Dizem que a senhora é intransigente, apegada a seus pontos de vista. Como é Dilma Rousseff, segundo ela mesma?

DILMA: Sou de fato uma pessoa de personalidade forte, tenho convicções formadas sobre assuntos que conheço. Sou franca, externo opiniões de forma absolutamente clara e direta, e brigo por elas. Mas só estúpidos são incapazes de mudar e não me acho estúpida. Tenho capacidade de ouvir o outro, admiro a capacidade de argumentação das pessoas, tenho prazer no debate e na troca de idéias. Se me convencem, sou capaz de mudar. Mudar é um diferencial importante da natureza humana. Mudando, construímos cultura e civilização. Minha capacidade de mudar já foi demonstrada ao longo de minha vida, é uma qualidade que reivindico.

Sua participação na luta armada ajudou a construir o mito da Dilma mandona? As evocações dessa passagem de sua vida lhe incomodaram?

DILMA: Se mandar já não é visto como atributo feminino, imagine guerrear. Mas as evocações não me incomodaram de modo algum. Não fui presa por nada relacionado com energia, megawatts ou minhas atividades recentes. Fui presa por combater uma ditadura, em outro momento. Faz parte da minha vida. "Oh, pedaço de mim..." (cantarolando Chico Buarque). Minha geração pode ter cometido erros táticos, mas tenho orgulho de nossa coragem e de nossa busca por um Brasil melhor e mais justo. Este projeto desembocou na eleição do presidente Lula. Por isso estou aqui.

RECORDE NO SUPERÁVIT

Embora não exista mais uma meta formal de superávit primário (receitas menos despesas sem contar o pagamento de juros da dívida), porque acabou o acordo com o Fundo Monetário Internacional (FMI), há um compromisso de governo de R$60,184 bilhões até agosto, e de R$83,850 bilhões no ano, o que representa 4,25% do PIB.

De janeiro a abril deste ano, porém, o superávit primário foi de 7,26% do PIB. Nos últimos 12 meses, ficou em 5,06%, acima da meta prevista para 2005.

O setor público registrou em abril superávit primário de R$16,335 bilhões, a maior economia para pagamento de juros da série histórica do Banco Central, iniciada em 1991. O resultado inclui União, estados, prefeituras e empresas estatais, tendo ficado acima dos R$11,901 bilhões do mesmo mês de 2004 graças ao aumento de receitas com tributos federais. Nos quatro primeiros meses do ano, o superávit também é recorde: R$44,012 bilhões, representando 7,26% do PIB, o que superou a meta do governo para o período, de R$35,780 bilhões.

"A meta de superávit fiscal tem que ser atingida. Mas o Orçamento aprovado precisa ser executado"

"Saberemos encontrar a mistura entre as necessidades políticas e as exigências técnicas"

Legenda da foto: A MINISTRA DILMA Rousseff: "Governar é fazer escolhas políticas, cada projeto reflete uma opção política"