Título: Vamos ter um Frankenstein em 2006?
Autor: Azuete Fogaça
Fonte: O Globo, 24/06/2005, Opinião, p. 7

O noticiário das últimas semanas conduz inevitavelmente a algumas reflexões sobre a vida política deste nosso pobre país, trazendo de volta lembranças do período em que vivíamos uma luta cotidiana contra o arbítrio e contra a violência. Foram mais de duas décadas em que nos esforçamos para desmontar, com a organização política possível, um aparato militar e ideológico que, em nome da democracia, usou o poder do Estado para legitimar o cerceamento dos nossos direitos e a liberdade irresponsável das elites políticas e econômicas que a ele aderiram e que nos enterraram numa dívida eterna que há anos vem custando o sangue, o suor e as lágrimas da maioria dos brasileiros.

Foram mais de duas décadas de perdas e de sofrimento mas durante as quais nunca se deixou de acreditar na possibilidade de se fazer deste país um país melhor. Não se tratava mais da crença juvenil dos idos de 1968 - afinal, o mundo mudara demais - mas de uma visão mais madura, de que pela via democrática seria possível tornar o Brasil um país um pouco melhor, mais justo, no qual pobreza não fosse sinônimo de desamparo total, de condições subumanas de vida, e no qual a cidadania fosse um atributo de todos. Porque o Estado de fato pautaria suas ações pelos interesses e necessidades da maioria da sociedade brasileira.

No final dos anos 80, para boa parte dos brasileiros essa visão começou a tomar forma, naquilo que seria visto por muitos estudiosos das ciências políticas como o mais importante produto dos anos de chumbo: a consolidação de um partido político que, nascido do povo, teria um compromisso com a construção desse Brasil menos desigual.

Milhões de brasileiros acompanharam sua evolução e acreditaram que, diante dos rumos ideológicos dos demais partidos e dos resultados dos governos pós-abertura política, mais cedo ou mais tarde ele seria a alternativa da maioria. E foi o que aconteceu. E esses milhões de brasileiros se emocionaram com a posse do operário-presidente, com uma sensação de "Ufa!!! Custou, mas chegamos lá." Como diria o Romário, "Valeu, peixe!" Enfim, ali estava a possibilidade de repensar nossos caminhos e buscar novas e melhores formas de superar nossos problemas, sem romper de forma irresponsável com a economia globalizada mas, também, sem exigir do povão mais sacrifícios do que ele já vinha fazendo há tanto tempo e sem repetir os descaminhos já históricos da política brasileira.

Só que, hoje, muita gente se pergunta se de fato valeu; se, de fato, "chegamos lá". A política econômica foi entregue a representantes dos mesmos interesses financeiros contra os quais se votou em 2002; e os mesmos argumentos que então se usavam se repetem hoje nas bocas dos "companheiros": o salário mínimo é o grande vilão a ser contido; os juros altos são o melhor remédio porque crescer faz mal; a tabela do Imposto de Renda não pode ser corrigida porque o governo vai deixar de arrecadar (o que não devia estar arrecadando).

Na área social, o enfrentamento da pobreza beira o assistencialismo e namora o clientelismo - o tamanho da "cesta de pobres" é mais importante do que a eficácia das políticas adotadas - que garante votos nos grotões. Ao mesmo tempo, esquecem-se a miséria e a violência que caminham de mãos dadas nas grandes cidades, reino das classes médias que, apesar das perdas salariais, seguem vistas como "privilegiadas". Tal como nos anos 90, a contenção dos gastos justifica a continuação do desmonte das instituições públicas, embora seja visível a queda da qualidade dos serviços prestados à população. As mortes nas portas dos hospitais e postos de assistência públicos são um terrível retrato do ponto a que chegamos.

Essa realidade fica ainda mais difícil de ser digerida diante de algumas atitudes tomadas em nome de uma "governabilidade" que, a cada novo escândalo na área política, confunde-se cada vez mais com o poder a qualquer preço. Se não for isso, o que explica as alianças que trazem para o centro do poder partidos que sabidamente representam o oposto do que se propunha? O que explica o governo se dizer parceiro de políticos cujas vidas públicas representam tudo que a maioria da sociedade repudia? O que explica a adesão cega à idéia de que não existe outro caminho senão o que está sendo trilhado, que não há nada a pensar ou a fazer de diferente, mesmo quando se sabe que existe um abismo logo adiante? Deve-se concluir que milhões de brasileiros escolheram o Dr. Jeckill mas estão convivendo com Mr. Hide?

Nesse cenário, apesar da aceitação de última hora, por parte do governo, de que a corrupção existe e deve ser apurada, e que alguns "parceiros" devem ser afastados, ainda me assalta uma grande preocupação: será que a campanha eleitoral de 2006 vai criar um Frankenstein?

AZUETE FOGAÇA é professora da Universidade Federal de Juiz de Fora e do Mestrado em Educação da Universidade Estácio de Sá, no Rio.